RESILIÊNCIA IDENTITÁRIA NO ANTIGO ISRAEL, UM ESTUDO DE CASO


FREDERICO MOURA IGNÁCIO

1 - Introdução

Abro a presente exposição com a seguinte proposta: é parte integral da natureza humana a incessante, e nem sempre consciente, busca por segurança (ou então pela sensação de segurança), no sentido em que se configura como atividade constante de todo indivíduo humano, desde seu nascimento até a sua morte. Partindo desse pressuposto se torna então possível realizar uma leitura específica do nosso costume ancestral de se reunir e viver em comunidade: tal prática pode ser entendida como uma forma elementar de garantir um mínimo de segurança para cada membro participante do grupo, mais do que conseguiriam sozinhos, seja em questão de prática ou de sensação.

Contrapartida do dito acima é o fato de que, quando em situação de convivência, individualidades múltiplas e diversas acabam representando perigo potencial umas para as outras, na medida em que agem com base em seus desejos, vontades, interesses, ou em outras palavras, com base em seus impulsos privados. Tal questão é de extrema importância pois se apresenta como inviabilizadora básica da vida coletiva, sendo, portanto, necessário remediá-la. É fundamental em uma comunidade que existam laços de proximidade e confiança entre seus membros, é necessário que tenham uma mínima certeza que certos acordos entre eles serão mantidos, muitas vezes superando até mesmo o passar de gerações (ASSMANN, 2006). Esses acordos em comum entre todos, laços pessoais intracomunitários, são o que possibilitam a vários indivíduos, de baixa potência autopreservativa, que ajam em conjunto, como se fossem um único corpo, agora com alta potência de se proteger, de garantir segurança.

Uma de tais ferramentas de coesão comunitária é a “identidade”, fundada em uma memória coletiva (ASSMANN, 2006) que une todos os membros da comunidade na medida em que escolhem, de modo coletivo e nem sempre consciente, o que vão esquecer e o que vão relembrar juntos (ASSMANN, 2011). Dessa forma, todos os indivíduos presentes naquela coletividade passam a ter um “algo em comum”: um passado em comum, práticas e tradições em comum, mitos e crenças em comum, etc., de tal modo que acabam forjando um substrato de união, em geral mais profundo do que qualquer impulso pessoal.

Dito isso, se faz necessário explorar brevemente como funciona na prática essa “relembrança dos laços coletivos”. A identidade de um povo pode ter bases de apoio das mais diversas, variantes de acordo com o caso em questão, e são essas bases que precisam ser reforçadas, em âmbito comunitário, periodicamente (ASSMANN, 2006). Em geral, isso se dá através da execução de práticas rituais (BELL, 2009). Seja por meio da exposição oral de contos (referentes à história daquele povo, mitos, etc.), da refeição coletiva, do sacrifício, etc., os rituais acabam por simbolizar, através da repetição sistemática e da rigidez de execução, a renovação do ordenamento cósmico (GEERTZ, 1973), ou seja, se fazem garantidores de que as leis que regem o mundo, no âmbito universal, e as leis que regem a comunidade, no âmbito mais particularizado, se mantém íntegras, portanto, unindo todos sob seu julgo e proteção.

A partir do já exposto é também possível concluir que, da mesma maneira que sua presença se mostra fundamental para a integridade social, a ausência ou destruição da memória coletiva, em geral, pode ter consequências desastrosas para a comunidade em questão. Os destinos mais comuns para os grupos que têm suas bases identitárias arrancadas de si é a dissolução e esquecimento, salvo os raros casos em que são capazes de se revitalizar, adotando e promovendo novas bases, mais de acordo com a situação em questão. A seguir, analisaremos o caso do Antigo Israel, um dos raros momentos na história humana em que um povo foi capaz de, apesar de toda a adversidade, se reinventar como comunidade portadora de poderosa identidade (CARR, 2014).

2 - Os judeus na Babilônia

Levante antigo, 586 AEC. As tropas do Império Neo-Babilônico marcham sobre a arrasada capital judia de Jerusalém. Ao que tudo indica sem grande dificuldade, o exército do novo império hegemônico do Antigo Oriente Médio foi capaz de superar as defesas desesperadas do povo judeu e arrasou com o reino, submetendo suas principais cidades, eliminando sua família real, destruindo o Templo de Jerusalém (seu centro de culto) e enviando, em forma de exílio, o que restou de sua aristocracia para a Babilônia. O que aconteceu com o reino de Judá também aconteceu com inúmeros outros pequenos Estados da região, culturas essas que hoje são praticamente irrecuperáveis, eternamente perdidas, esquecidas por nós. Dito isso, chama então a atenção o caso que estamos abordando. Apesar do contexto catastrófico que acabamos de emoldurar, a identidade judia permanece viva nos dias de hoje, 2500 anos passados — claro que tendo sofrido diversas outras transformações no meio desse longo trajeto —, inclusive tendo sua comunidade reconquistado o direito à ocupação da região que hoje abriga o Estado moderno de Israel. Como isso aconteceu? O que aqueles sobreviventes do massacre fizeram de tão diferente e inovador, no contexto da região?

Segundo o que nos conta a Bíblia, o reino de Israel nasce quando o rei David consegue unir as doze tribos que viviam na região, formando assim uma só comunidade. Como vimos aqui anteriormente, para que doze grupos humanos diferentes possam viver juntos é necessário que rapidamente se forme também uma identidade comum entre eles. Isso se fez através da junção de duas figuras centrais: David e YHWH, ou Jeová, divindade própria daquela cultura (ARMSTRONG, 2008). Importante ressaltar que sabemos que muito provavelmente o povo judeu só adotou de forma disseminada o monoteísmo javista num período posterior, mas aqui no presente texto adotaremos tal ideia de imediato, para facilitar a compreensão do entendimento que o povo exilado tinha de si mesmo, ou seja, de sua identidade.

David se apresenta na memória judaica não só como unificador, conquistador e lendário líder político, ele também é aquele com que Deus estabeleceu sua aliança, aquele que Ele prometeu proteger, promessa que abrange inclusive sua linhagem, os subsequentes reis de Israel. Dessa forma, a linhagem davídica passa a figurar na memória coletiva como símbolo máximo de proteção e segurança, na medida em que o povo também acredita na potência ilimitada de seu Deus. A divindade ainda colabora para a sensação de segurança de outra forma fundamental: é conhecimento geral do povo que o Templo de Jerusalém não se trata apenas de local de culto, mas também, e principalmente, é a moradia de Jeová, portanto local altamente sagrado e intransponível, inatingível, eterno. Jerusalém e, por extensão, o reino, acabam também desfrutando de proteção divina, como local próprio de habitação da divindade. De forma geral, a identidade do povo de Israel, no século VI AEC, se faz então baseada nesses dois princípios básicos e tangíveis: a linhagem davídica e o Templo de Jerusalém.

Continuando a narrativa semi-histórica, semi-mítica, do reino, sabemos que após a morte de David, Israel se divide em dois reinos menores: Israel, de mesmo nome, no Norte, e Judá, no Sul. Importante também aqui dizer que é em Judá que fica Jerusalém, sua capital. O imperador assírio Sargão II (rei entre 722 e 705 AEC) no segundo ano de seu mandato derrota e conquista o reino do Norte, porém sem estender sua campanha para o reino do Sul. Dentro do contexto de nossa presente análise, se faz muito interessante o entendimento do reino do Sul a respeito desse episódio: tendo assistido a total aniquilação de seu reino irmão, porém tendo saído ileso do conflito, a aristocracia de Judá acabou por interpretar o ocorrido como uma espécie de punição divina contra seus irmãos que haviam praticado culto a outras deidades, além de Jeová. Ao realizar tal afirmação, estão ao mesmo tempo dizendo que, tendo sua segurança garantida durante a guerra, eles do reino do Sul só poderiam estar então cultuando do modo “certo”, ou seja monoteísta, tendo portando a aprovação divina.

Tal possibilidade de leitura se faz ainda mais instigante quando conjugada com o que discutimos no momento inicial do texto em mãos. Ao interpretar a força avassaladora do exército assírio como mera ferramenta de Jeová, o povo judeu se nega a reconhecer sua total falta de controle sobre sua própria segurança e estabilidade e, pelo contrário, reforça sua sensação subjetiva de domínio sobre seu próprio futuro. É como se dissessem “as tropas assírias são vastamente superiores às nossas? Sim, elas são. Porém, nós temos o controle, basta cultuar Jeová, somente Jeová, respeitar suas tradições e rituais, que estaremos salvos, seguros em Jerusalém, sua casa, sob sua protegida linhagem davídica”. Dessa forma, o pequeno reino levantino consegue manter sua ilusão de segurança ao mesmo tempo em que reforça sua identidade e seus laços de união (CARR, 2014).

Dito isso, revisitemos a queda do reino do Sul, em 586 AEC, fato já citado anteriormente nesta dissertação. Para qualquer comunidade genérica a perda de seu território e de seu sistema de organização política já configurariam golpes duros demais para uma possível subsequente revitalização identitária, porém a aristocracia judia não passou somente por isso. Além, ela perdeu, de forma brutal, seus dois principais pilares de união e, na sequência imediata, foram lançados em terra estrangeira, que não conheciam, em meio a nativos de costumes e língua completamente diferentes, onde não detinham mais nenhum tipo de influência política. Retomemos então o questionamento anterior: como foi possível uma total revitalização identitária nesse contexto? De onde vem tamanha resiliência?

Uma pequena sobrevida da memória coletiva é natural que tenha existido, os exilados imediatos ainda detinham muitas memórias de sua terra natal, do dia a dia, cotidiano, costumes, sabiam perfeitamente a língua, conheciam uns aos outros, etc., porém, igualmente natural é que seus filhos, netos, bisnetos, fossem perdendo tudo isso gradativamente, até que se tornassem completamente babilônios. Para que isso não acontecesse, a comunidade deveria fazer o que já dissemos anteriormente: não deixar morrer seus costumes e práticas rituais. Com a linhagem davídica morta e o Templo de Jerusalém, local por excelência da prática ritual, destruído, se fez então necessária a troca de pilares de identidade, para que a nova configuração estivesse de acordo e em harmonia com a também nova condição social de existência.

Finalmente, nossa hipótese é de que os judeus exilados fizeram isso, principalmente, através do resgate de um passado comum ainda mais remoto: as narrativas patriarcais. Um tempo majoritariamente mítico, temporalmente muito distante, a história israelita pré-David se mostra como uma boa escolha de nova base identitária na medida em que reflete as inúmeras incertezas e inseguranças proporcionadas pela situação de exílio e, mais do que isso, as rebate com promessas divinas de proteção e de prosperidade futura, tendo passado esse período momentâneo de dificuldades. Mais uma vez podemos ler a situação como uma tentativa, desesperada, da sociedade judia de se agarrar como pode à noção de que são sim donos e responsáveis pelo próprio futuro, seu Deus não os abandonou, só está os punindo por erros de conduta e os provando em sua fé, ou seja, no fundo só depende deles a garantia de um futuro melhor (CARR, 2014).

É com base em argumentos como esse que boa parte dos especialistas hoje acredita que o livro do Gênesis, como o conhecemos, fora majoritariamente composto nesse período. Ali encontramos diversas histórias sobre personagens nômades, portanto sem pátria, que enfrentam a todo tempo diversas tribulações e dificuldades, mas que, sempre que agem com fé e de acordo com Jeová, conquistam a confiança e a proteção do Deus e, mais importante, conseguem superar as adversidades. Desse modo, a nova narrativa passa então a pregar que antes mesmo do rei David, antes mesmo do Templo de Jerusalém, já existia o povo judeu, eles já cultuavam seu Deus protetor e, portanto, agora que os antigos pilares não existem mais, a identidade deve resistir, independente do que se perdeu, mas agora com base na memória de seus mais longínquos ancestrais.

Observado sob a ótica que apresentamos, o processo pelo qual atravessa a comunidade judia no exílio acaba marcado então por dois principais momentos: em primeiro lugar temos o choque inicial, resultado da quase completa fragilização do tecido social e, em um segundo momento, desses escombros identitários nasce uma nova estrutura de coesão social, ligada intimamente à tradição anterior, porém adaptada para a nova configuração de realidade enfrentada por aquele povo. O momento se faz digno de estudo por escancarar o quão difícil é para um sujeito social realizar o salto entre o primeiro e o segundo momento supracitados. Acreditamos que o presente texto consiga transmitir para o leitor a importância do estudo do livro do Gênesis no que diz respeito aos processos identitários judaicos. Porém, mais do que somente para que alcancemos uma maior compreensão sobre àquele contexto específico, esse esforço se mostra importante também em função de um clareamento mais geral de toda a questão do relacionamento entre indivíduos humanos e de como coletividades reagem em situações de crise.

REFERÊNCIAS:

Frederico Moura Ignácio é graduando do curso de História da FFLCH-USP. O texto apresentado faz parte do processo de execução do projeto de iniciação científica “Sacrifício e Coesão Social no Antigo Israel: uma leitura de Gênesis 22”, sendo desenvolvido sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Rede, parte integrante do Departamento de História da FFLCH-USP.

Bibliografia:

ARMSTRONG, Karen. Uma História de Deus: Quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011.
ASSMANN, Jan. Religion and Cultural Memory. Stanford: Stanford University Press, 2006.
BELL, Catherine. Ritual: Perspectives and Dimensions. Nova York: Oxford University Press, 2009.
CARR, David M. Holy Resilience: The Bible’s Traumatic Origin. New Haven & London: Yale University Press, 2014.
GEERTZ, Clifford. “Religion as a Cultural System”. In: The interpretation of Cultures: Selected Essays. New York: HarperCollins, 1973.

11 comentários:

  1. Olá, Frederico! Parabéns pelo texto e pela iniciativa de pesquisa.

    Gostaria de saber se, em sua pesquisa, você pretende incorporar outras bases documentais além do texto bíblico? Existem outras fontes disponíveis (em se tratando de uma pesquisa de IC) para o estudo de tais populações?

    Abraços,
    Diego.

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    1. Boa noite Diego,

      Dentro dos limites do meu conhecimento posso te responder que existem sim fontes extra-bíblicas que, quando analisadas, permitem o estudo do Israel Antigo. Exemplos disso seriam documentos históricos, escritos ou não, provenientes das culturas que estiverem em contato com o povo judeu, ou então que participaram ativamente da história da região, nesse recorte temporal, como os egípcios, assírios, hititas, etc.

      Agradeço as palavras de incentivo.

      Forte abraço,
      Frederico.

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  2. Olá Frederico. Achei muito interessante seu estudo.
    Gostaria da sua opinião sobre algo que seu texto me fez pensar. Partindo de sua ideia central, a forma como a bíblia foi escrita - quase que um livro de contos, histórias e lendas - seria uma forma proposital e eficiente de eternizar esta memória coletiva, mais até do que divulgar a religião judaica? Agradeço se me der sua opinião. Grande abraço.

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    1. Bom dia Fernando,

      Em primeiro lugar, agradeço pela leitura e pelas palavras.

      O processo de produção da Bíblia Hebraica foi bastante complexo e longo. Dos primeiros contos material oral contado por um indivíduo ao outro, até a forma escrita, em forma de livro, mais ou menos parecida com a que temos hoje, foram muitos séculos de trabalho (e de revisão e reescrita de trechos mais antigos também). Dessa forma, acho difícil afirmar que a Bíblia teria qualquer função proposital como preservadora de memória. Acredito que a preservação da memória é um impulso natural das comunidades humanas e, ao realizar essa vontade inerente, nós acabamos por criar e disseminar nossas histórias, contos e lendas (como o senhor colocou). Dito isso, creio que a formação do corpo bíblico foi uma decorrência, ao contrário de um possibilitador, desse longo processo de estruturação da memória judaica.

      Espero ter respondido minimamente sua questão. Se não for o caso, por favor não deixe de comentar novamente.

      Abraços,
      Frederico.

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  3. Bom dia, Frederico!
    Muito interessante a sua reflexão sobre a importância da identidade de um grupo para conservar seus costumes e principalmente dar a segurança que necessitam no seu dia a dia>
    Gostaria de saber se você vai pesquisar outros povos que já se viram na mesma situação do povo judeu e qual o resultado obtido, ou seja, conseguiram manter sua identidade ou não?
    Abs

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    1. Bom dia Analice,

      Agradeço a atenção e o reconhecimento do trabalho realizado.

      Em relação a sua pergunta, a resposta rápida é: sim, pretendo. O real tema da minha pesquisa, e consequentemente do texto em mãos, são essas dinâmicas fundamentais do relacionamento humano em sociedade, em especial em relação ao comportamento da identidade comunitária em situações de crise. Portanto, o contexto do Antigo Israel acaba sendo apenas um veículo possibilitador do estudo dessas dinâmicas. Com certeza seria bastante enriquecedor observar e analisar como outros povos, em outros lugares e tempos, lidaram com situações similares. Dito isso, precisamos reconhecer que meu trabalho se trata de um projeto de iniciação científica, ou seja, apenas do primeiro passo de uma possível futura carreira acadêmica que pode acabar enveredando por caminhos que hoje nem imaginamos.

      Abraços,
      Frederico.

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  4. Boa noite Frederico,

    Primeiramente o parabenizo pela reflexão e montagem do texto, tratando esse tema tão essencial de maneira compreensível e bem estruturada.

    Trago também a minha própria reflexão, acompanhada de um convite à sua: Sendo brasileiro, é impossível ler seu excerto e não pensar sobre a população indígena que foi genocidada desde o sec. XVI até o XX, principalmente no nosso litoral. Um dos instrumentos aplicados para eliminação desses povos foi justamente a desculturalização, aplicada no sentido da perda do senso de identidade, pertencimento e história. Você acredita que os menos de 20% remanescentes desses anos de perseguição podem se reinventar como comunidade portadora de poderosa identidade, da mesma forma que o povo judeu? Quais as principais diferenças entre os povos te faz pensar dessa maneira?

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  5. Boa noite Guilherme,

    Obrigado pelas palavras e pelo convite. Sua questão é bastante profunda e induz a importantes reflexões para nós enquanto brasileiros. O que penso a respeito é o seguinte:

    Em decorrência do caso que escolhi abordar, o texto acaba focando totalmente na situação em que o povo em questão consegue superar as adversidades e preservar sua identidade, porém, como citei brevemente em dado momento da dissertação, o caso do povo judeu é extremamente raro quando comparado com a totalidade de comunidades que se viram ameaçadas por crises identitárias. É muito difícil fazer o que os judeus fizeram na Babilônia, foi uma situação bastante singular, ponto base da minha escolha por estudá-los. Na maioria dos casos o que acontece é o esquecimento e dissolução social.

    Dito isso, o processo de esquecimento e dissolução social é acompanhado, de modo dialético, por outro de ressignificação do indivíduo: enquanto se dissocia da antiga comunidade/identidade, aquele sujeito também acaba se associando a uma nova comunidade/identidade. Como disse no texto em debate, o esperado seria que os descendentes do povo exilado acabassem por, em poucas gerações, se integrar à cultura babilônica. Além do caso dos judeus, também existem outras possibilidades de resposta por parte dos indivíduos "orfãos", como por exemplo o mais completo isolamento (o que, não surpreendentemente, pode levar a morte prematura daquele sujeito) ou então a formação de novas comunidades, diferentes da antiga identidade, porém também distintas de qualquer outra comunidade própria da nova situação social em que se encontram (os babilônios, no caso do Antigo Israel). Isso se dá, geralmente, através da mescla de elementos da antiga identidade com outros dos grupos que interagem com a nova comunidade. Estou extrapolando minha área de maior familiaridade acadêmica, porém gostaria de dizer aqui que acredito que os indígenas brasileiros, em geral, se enquadram nesse último exemplo.

    O que observamos hoje em dia na maioria das comunidades indígenas remanescentes é exatamente isso: uma mescla de elementos tradicionais com elementos ditos modernos. Os sujeitos desses povos agem ativamente em busca da preservação de alguns elementos de seu passado ancestral (escolhem lembrar), enquanto abrem mão de outros (escolhem esquecer), ao mesmo tempo em que absorvem, através do contato constante e inevitável, elementos da cultura brasileira moderna para dentro de sua convivência comunitária. Desse modo, os modernos indígenas brasileiros podem sim ser lidos como um exemplo de reinvenção comunitária, portadora de poderosa identidade, porém sendo esta diferente da identidade ancestral e também da identidade brasileira moderna.

    Tenho total certeza de que o assunto pode ser abordado de modo muito mais profundo e bem fundamentado, aliás tenho também consciência de que posso ter cometido erros teóricos e conceituais, porém acredito ter conseguido expressar o que penso a respeito, minhas reflexões.

    Mais uma vez agradeço o convite a reflexão e a atenção,
    Abraços,
    Frederico.

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  6. Olá, Frederico, boa noite!

    Parabéns pelo texto, um tema muito instigante! Importante sempre revisitar e continuar a pesquisa em cima de um corpus documental crucial de nossa história. Tenho duas questões de caráter mais metodológico.

    A primeira se refere à leitura que fez (e que pretende fazer) documento, ela será em traduções ou no original? Tendo isso em vista, gostaria de saber como você trata metodologicamente a questão da língua para seu tema.

    A segunda questão é sobre como pretende inserir outras documentações em sua pesquisa.

    Um abraço e muito boa sorte,
    Carlos

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    1. Bom dia Carlos,

      Agradeço pelas palavras e pela atenção.

      Do ponto de vista metodológico a Bíblia acaba sendo um documento bastante complicado, único em diversos aspectos. Em primeiro lugar não existe um "original" com o qual possamos trabalhar, mas sim diversas versões, recuperadas de tempos e espaços diferentes, porém todas escritas em períodos muito posteriores a esse que me propus a trabalhar. Se não me engano, a versão mais antiga de que temos notícia é a que se encontra nos chamados "Manuscritos do Mar Morto", datados dentre os séculos III e II AEC, que apresentam diversas dificuldades acadêmicas de análise, como por exemplo em relação a fragilidade do material suporte, em relação a tradução dos fragmentos, em relação a própria condição fragmentada do documento, etc. Além disso, a composição canônica do corpo bíblico nem sempre foi essa mesma que temos hoje, os próprios manuscritos que acabei de citar incluem no conjunto livros hoje considerados apócrifos.

      Dito isso, gostaria de responder sua primeira questão dizendo que realizo meu trabalho a partir da leitura de uma versão particular da Bíblia Hebraica: a tradução para o português brasileiro chamada "Bíblia de Jerusalém", publicada pela Editora Paulus, 12ª edição, de 2017. Opto por essa versão do documento por se tratar da mais própria para o estudo acadêmico, em língua portuguesa, por contar com mapas diversos (território atual, sítios arqueológicos, aproximação do suposto território antigo), notas de rodapé comentando a respeito dos debates acadêmicos referentes às diversas passagens, além da própria tradução ter um enfoque maior na preocupação de manter o mais próximo ao original hebraico possível a estruturação das frases e escolha de palavras/conceitos. Com toda certeza seria preferível trabalhar em cima do texto hebraico, ainda mais do hebraico antigo, porém dentro de minhas limitações pessoais esse é o material mais próprio possível.

      Em relação a segunda questão: pela própria natureza da pesquisa que estou realizando, qualquer documentação extra-bíblica só entra no processo de trabalho como documentação auxiliar. Meu trabalho, propriamente dito, é totalmente focado em uma passagem específica do Gênesis (Gen 22), através da qual pretendo entender a questão que abordei na dissertação presente aqui no Simpósio. Como meu objetivo é analisar essa relação entre a formação da Bíblia e a situação de vida em que se encontravam seus "escritores", o Antigo Testamento acaba sendo realmente meu documento base por excelência. Por outro lado, como disse, é possível sim conjugar esse trabalho com documentação auxiliar, extra-bíblica. Isso seria possível através do trabalho com fontes históricas, provenientes da própria Babilônia, que pudessem talvez nos ajudar a compreender como era a realidade dos exilados, tendo a vantagem de apresentar uma visão "de fora", para que pudéssemos comparar com a visão presente na própria Bíblia. A dificuldade desse trabalho auxiliar, como acontece com muitas outras fontes extra-bíblicas, é a de que do ponto de vista desses outros povos, muitas vezes grandes Impérios, a comunidade judaica não passava de mais uma dentre tantas. É muito difícil para o historiador encontrar referências aos judeus na documentação egípcia, por exemplo, uma vez que para o governo deles o importante era lidar com "os escravos", não importando muito as diversas culturas ali misturadas.

      Carlos, procurei suas questões responder dentro das minhas capacidades e espero ter as elucidado. No caso contrário, lhe convido à réplica dessa minha resposta.

      Mais uma vez obrigado pelo contato,
      Abraços,
      Frederico.

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  7. Frederico

    Parabéns pelo texto.
    Farei uma leitura atenta. De qualquer forma, a bibliografia é boa.

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