REPENSANDO O TRADICIONAL: A NOVA HISTÓRIA POLÍTICA E O ENSINO DE HISTÓRIA


Ernesto Padovani Netto
Daniel Rodrigues Tavares



A história política costuma ser imediatamente vinculada aos trabalhos que buscam como objetos de pesquisas relações sociais constituídas no âmbito do “poder”. Esta percepção não nos parece errônea, porém o que tem se debatido já há algum tempo, é a compreensão do que se entende por “poder”, para isso, o enfoque dado a estes estudos, podem localizá-los dentro da velha história política, chamada também de história tradicional ou positivista, ou dentro do campo da nova história política.

A história política gestada no século XIX viu seus pressupostos ruírem, inicialmente a partir das críticas da escola dos Annales, a qual propôs novos objetos e abordagens dentro da historiografia. Vista como ultrapassada por compreender a história a partir do Estado, e de suas figuras proeminentes como reis, militares e governantes em geral, a história política passou décadas sendo estigmatizada, pois falar de poder era atrelado à uma visão tradicional, ao mesmo tempo em que muitos historiadores migravam para campos vistos como mais modernos, como estudar a história da loucura, dos costumes ou do imaginário.

 Pelo menos nas últimas quatro décadas o estudo da história ligado ao poder vem sofrendo grandes reformulações e passou a ser chamado de nova história política, essa inovação veio no sentido de ampliar a noção de poder para além dos espaços ligados à figura do Estado e de seus representantes, mas entendê-lo agora dentro de relações estabelecidas no cotidiano, como por exemplo na família ou em sindicatos, fugindo assim dos “grandes personagens históricos” focados outrora, esse novo olhar possibilitou aos historiadores,  observarem as relações de força no interior da sociedade analisando indivíduos ou coletivos, ainda que pareçam anônimos do antigo ponto de vista dos grandes feitos. Sobre as transformações na história política ver: “A política será ainda a ossatura da História?” (LE GOFF, 1975).

Francisco Falcon nos diz o seguinte a cerca desta questão:
“A historiografia política passou a enfocar, nos anos 70, a Microfísica do poder, na realidade as infinitas astúcias dos poderes em lugares históricos pouco conhecidos dos historiadores — família, escola, asilos, prisões, hospitais, hospícios, polícia, oficinas, fábricas etc.; em suma, no cotidiano de cada indivíduo ou grupo social” (FALCON, 1997, p. 114).

Ao citar a concepção de “microfísica do poder”, Falcon claramente revela a influência de Michel Foucault na produção historiográfica, ver “Microfísica do poder” (FOUCAULT, 1979). Para além dos novos temas, a nova história política reelaborou as abordagens mesmo em temáticas ligadas ao poder e tratadas tradicionalmente pela história positivista, como a figura de governantes, as guerras e as instituições vinculadas ao Estado, estes focos de investigação também retornaram com intensidade, porém não mais vistas pela ótica do heroísmo e do protagonismo em termo de façanhas, mas sim analisadas pelo prisma de suas contradições.

Optamos por trabalhar com a história regional/local, inclusive com a escolha de uma autora radicada na região Amazônica: a professor Magda Ricci e o seu texto “Cabanagem, cidadania, e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840”. Pensamos a perspectiva de trabalhar diretamente com os textos de historiadores, assim como já apresentados nas propostas de intervenções em sala de aula anteriores, uma vez que, como apontamos, o livro didático apresenta problemas em relação às especificidades das regiões brasileiras. Além de que, o ensino de História, como um lugar de fronteira entre a educação básica e a produção acadêmica (MONTEIRO, 2007, p. 9), não pode desconsiderar o conhecimento construído na academia, apesar de não ser prudente imaginá-lo como superior em relação aos saberes que se podem produzir na escola.

O movimento cabano promoveu 30 mil mortes dentre cabanos e seus inimigos. A Amplitude territorial do movimento vai do litoral norte ao nordeste, chegando às fronteiras do Brasil central, assim como causou “distúrbios internacionais na América caribenha, intensificando um importante tráfico de ideias e de pessoas”. Os cabanos se autodenominavam patriotas, que não necessariamente significava ser brasileiro (RICCI, 2007, p. 6), até porque o contexto o qual se vivia era de afirmação da nacionalidade brasileira e de preocupação com a centralização e a unidade do território. A Cabanagem ganhou notoriedade e relevância, dentre muitos motivos, também porque foi o único movimento de então que conseguiu tomar o poder, e na capital de uma província, a do Grão Pará (MOURA, 2013, p. 1). Magda Ricci discute o surgimento de uma identidade entre os cabanos que se amalgamou a partir do ódio comum ao “mandonismo branco e europeu” (RICCI, 2007, p. 7). É interessante discutir com os discentes as visões diferentes que se construíram sobre a Cabanagem. Para Domingos Antônio Raiol, o Barão de Guajará, que escreveu sobre o movimento ainda no século XIX, foi um motim político. O Barão de Guajará vê a Cabanagem pela ótica do Estado/Império, ou pela falta de pulso/poder/controle na repressão ao movimento. Nas décadas de 1920 e 1930, os cabanos deixam de ser “sediciosos”, viram “patriotas”, “adeptos da causa brasileira”. Construía-se uma visão positiva a respeito do tema, principalmente na visão Henrique Jorge Hurley (RICCI, 2007, p. 8). Em 1930: Caio Prado Júnior traz uma versão de linha marxista, na qual os cabanos são vistos como “rebeldes primitivos”. Em 1977, militante do PCB, Ricardo Guimarães, sugere que as “maiores tentativas revolucionárias da esquerda brasileira” foram a Cabanagem e a Guerrilha do Araguaia – lutas anti-imperialistas, num contexto de luta contra a ditadura militar (RICCI, 2007, p. 8). Na década de 1980, Carlos Rocque, José Júlio Chiavenato e Pasquale di Paolo lidam com a Cabanagem como “epopeia de um povo”, o “povo no poder” e como “revolução popular”, respectivamente (RICCI, 2007, p. 10), dando uma importância central aos cabanos na condução do processo revolucionário.

De janeiro de 1835, a maio de 1836, Clemente Malcher, Francisco Vinagre e Eduardo Angelim, foram os líderes cabanos que estiveram à frente da presidência da província no Pará. Como nos fala Magda Ricci (RICCI, 2007), ao longo do seu texto, sempre que os líderes ordenaram que os cabanos entregassem as armas e aceitassem as ordens do governo regencial, uma grande parte desses se recusava a acatar o arrefecimento, continuava na linha de frente do combate, desautorizavam o líder e aclamavam outro como presidente da província. A autora chama isso de “experiência de classe”, um aprendizado de luta, que nasce em meio a relação com os líderes (RICCI, 2007, p. 13).

Após a retomada de Belém pelas tropas regenciais, o general Soares d’Andréa foi nomeado para a presidência da província e assumiu a responsabilidade de reconstruir o Grão-Pará e combater os cabanos. O próprio Andréa dizia que o recrutamento de soldados para a província havia de ser feito fora do Pará, pois havia um “pacto secreto” entre os habitantes da Amazônia. De maio de 1836 ao ano de 1840, os cabanos rumaram ao interior da província e até ultrapassaram seus limites, mantendo viva a luta cabana, a qual Magda Ricci relaciona a identidade revolucionária com uma noção de cidadania que se vincula a não aceitação das imposições e dos desmandos, imputando uma preponderância às pessoas que construíram o movimento até maior do que de seus líderes:

“É neste rico mundo que os cabanos criaram seus próprios mecanismos construtores de sua cidadania. É esta cidadania que o maior repressor dos cabanos, o General Soares Andréa, vislumbrava no povo da Amazônia e seu “pacto secreto”.

“Depois de cinco anos de luta, os cabanos criaram ódio aos brancos e às autoridades impostas, aprendendo a amar a aclamação popular e a revolução infinita. Cultuavam a beleza revolucionária, mas viveram outras mazelas: a fome, as doenças, as mortes e a instabilidade da guerra” (RICCI, 2007, p. 28).

Sugerimos como atividade a pesquisa na qual os alunos encontrem as reconstruções da Cabanagem em períodos mais recentes, como exemplo o Memorial da Cabanagem, no Governo de Jader Barbalho, nos anos 1980, a Aldeia Cabana e o Governo Cabano de Edimilson Rodrigues na virada do século XX para o XXI, para discutir imaginário e memória sobre o movimento.

Considerações finais

Compreendemos que a dicotomia entre pesquisa e ensino, assim como, entre saber acadêmico e saber escolar não contribui para o desenvolvimento da ciência histórica, promovendo o afastamento do grande público em relação à História. Assim, apresentamos possibilidades de aproximação, de conexões entre o espaço de produção da academia, que gera textos técnicos, com o locus do ensino da educação básica, onde podemos utilizar o conhecimento produzido academicamente como uma ferramenta que auxilia na produção conhecimento histórico escolar.

Referências

Ernesto Padovani Netto - Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA-2006). Concursado como docente da Secretaria Executiva de Estado de Educação (SEDUC), atuando, na modalidade Educação Especial do Estado do Pará no ensino de História para alunos surdos. É especialista em Educação especial com ênfase em inclusão pela Faculdade Ipiranga (2013), e Mestre pelo Programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA), polo da UFPA, - Campus Ananindeua.  Atualmente é doutorando em História Social da Amazônia pelo PPHIST – UFPA. E-mail: ntpadovani@gmail.com.

Daniel Rodrigues Tavares - Bacharel e licenciado pleno em História pela Universidade Federal do Pará – UFPA (2007). Especialista em “Patrimônio Cultural e Educação Patrimonial” pela Faculdade Integrada Brasil Amazônia – FIBRA (2013). É Mestre pelo Programa Profissional em Ensino de História (PROFHISTÓRIA), pela UFPA, no Campus de Ananindeua. Professor da rede pública de ensino, pela Secretaria de Educação do Estado do Pará (SEDUC), e pela Secretaria de Educação do Município de Belém (SEMEC). E-mail: trdan@ig.com.br.

LE GOFF, Jacques. A política será ainda a ossatura da História? In: O Maravilhoso e o Cotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1975. p. 221-242.

FALCON, Francisco. História e Poder. In: Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. CARDOSO, C. F. S.& VAINFAS, R. (org.).  Rio de Janeiro: Campus, 1997.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
MONTEIRO, Ana Maria. Ensino de História: entre história e memória. In: Gilvan Ventura da Silva; Regina Helena Silva e Simões; Sebastião Pimentel Franco. (Org.). História e Educação: territórios em convergência. 1ª Ed. Vitória (ES): GM/ PPGHIS/UFES, 2007.

MOURA, Daniele Figuerêdo. As faces da “malvadeza”: os cabanos na visão do presidente Soares d’Andréa e os embates pela retomada do Grão-Pará no contexto da Cabanagem. Anais do XXVII. Simpósio Nacional de História. Natal, 2013, p. 1-17.

RICCI, Magda. Cabanagem, cidadania, e identidade revolucionária: o problema do patriotismo na Amazônia entre 1835 e 1840. Tempo, vol. 11, n. 22. 2007, p. 5-30.

3 comentários:

  1. Bom dia prezados,

    Parabéns pelo texto acerca da conexão História Política e Ensino de História.
    Eu queria perguntar se dentre as atividades sugeridas para serem usadas em sala, não seria possível a procura de locais de memórias menos consagrados, e mais próximos das gentes comuns?
    Vocês citam as seguintes possibilidades:

    "Sugerimos como atividade a pesquisa na qual os alunos encontrem as reconstruções da Cabanagem em períodos mais recentes, como exemplo o Memorial da Cabanagem, no Governo de Jader Barbalho, nos anos 1980, a Aldeia Cabana e o Governo Cabano de Edimilson Rodrigues na virada do século XX para o XXI, para discutir imaginário e memória sobre o movimento."

    No aguardo.
    Saudações,
    Danilo Sorato Oliveira Moreira.

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    1. Agradeço pelo questionamento Danilo. Os locais indicados no texto e ressaltados por você foram indicados devido a conexão com a história política do Pará, mas sem dúvida que em uma perspectiva "menos oficial", a própria noção de patrimônio deve ser pensada por um viés mais próximo da vida cotidiana das pessoas.

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  2. Agradecemos a leitura e o questionamento. De fato a conexão com o cotidiano do aluno no aspecto além da memória oficial é extremamente necessárinecessário. Destacamos que é possível também pensar o bairro periférico e a linba de onibus cabanagem, como uma memória apropriada para designardesignar nome de espaço em que pessoas comuns vivem.
    Entretanto, os aspectos citados no texto também fazem parte da vida de pessoas menos favorecimenoauma vez que muitas passam quase todos os dias, dentro dos coletivos pelo Memorial da Cabanagem e pela Aldeia Cabana. Além disso, a Aldeia Cabana é um local em que se comemora o carnaval de Belem. Muitos populares aproceitam essa festa.

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