REFERENCIAL LATINO-AMERICANO NA OBRA DE RAUL SEIXAS: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES


Jeferson do Nascimento Machado*

INTRODUÇÃO


Raul Seixas foi um cantor multifacetado, que buscou explorar variados estilos, tendo como intuito traduzir questões filosóficas e suscitar o imaginário popular para outras formas de sociabilidades. Para além das referências já conhecidas, como o rock e o misticismo inspirado em Aleister Crowley, o músico também buscou inspirações na musicalidade latino-americana. Esta última, em especial, foi pouco explorada e carece de estudos. Assim sendo, buscamos refletir sobre estes referenciais e suas implicações na construção da identidade latino-americana.

DE ELVIS À VIOLETA PARRA

Raul Seixas conheceu o rock e blues em 1957, quando sua família mudou para uma casa próxima do Consulado Americano em Salvador. Nessa época ele tinha onze anos e passou a ter contanto com alguns garotos americanos, os quais apresentaram para ele Elvis Presley, Chuck Berry, Eddie Cochran, bem como toda a cultura da juventude transviada americana, que passava pelas atuações de James Dean (JORGE, 2012). É nítido a influência da cultura estadunidense, mas Raul gostava de frisar o caráter negro e caipira dessa cultura:

“Nunca liguei muito pras letras das músicas. Apesar que eu aprendi inglês, meu primeiro inglês, o dos caipiras (hillbilies) e dos negros cheios de sotaque. Era o ritmo tribal que me amarrava mesmo, gostoso, empolgava [...]” (SEIXAS apud PASSOS, 1993, p. 15).

Vale acrescentar que quando Raul conheceu o rock ele já estava imerso no caldo cultural brasileiro, que ia do baião ao samba. Assim sendo, ele foi desenvolvendo a sua musicalidade nessa dialética da cultura nacional com a estadunidense. Agora acrescentemos a essa dialética o misticismo de Crowley, muita filosofia e músicas latinas: este era Raul Seixas.

Deste modo, à semelhança de outros artistas brasileiros da sua época, como Belchior, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento etc., que realizaram constante conversa com o mundo latino (PAULA, 2011), Raul Seixas também se alimentou deste caldo cultural. Acerca de partes desse caldo, podemos destacar o Tango argentino e uruguaio, o Bolero, as músicas cubanas e o folclore chileno, levado ao mundo por nomes como Victor Jara e Violeta Parra.

Do Tango é notável a influência de Carlos Gardel, que é literalmente citado na letra de Sociedade Alternativa, presente no álbum Gita de 1974. Também fica evidente a influência de Enrique dos Santos Discépolo, que Raul chegou a regravar, no álbum Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum! de 1987, a sua canção Cambalache, no qual realizou uma interpretação em português. O Tango também aparece enquanto ritmo, como pode ser verificado no Canto Para minha Morte, que é a faixa de entrada do álbum Há 10 Mil Anos Atrás de 1976.

Em relação o Bolero, pode-se apontar para Sessão das Dez, faixa do álbum Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, composto em 1971. Conforme o próprio Raul: “Eu faço boleros, tantos e canto pra quem curte isso também. Minha música é pra todo mundo. Não é hermética, porque não complico” (SEIXAS apud PASSOS, 1993, p. 107).

Quando criança Raul gostava bastante da orquestra cubana Lecuona Cuban Boys e quando estava com doze anos colocou em seu diário que “o disco que eu mais gostei na vida mais de que tock’ n’ roll mais que samba mais que mambo foi ‘Cubanacan” (SEIXAS, 1983, p. 14).

Raul Seixas além de escutar músicas latinas e interpretar músicas latinas em português, também buscou gravar músicas próprias em espanhol. Entre essas canções podemos citar as versões em espanhol de Metamorfose Ambulante e Ouro de Tolo, que aparecem no álbum póstumo, O Baú do Raul, produzido por Sylvio Passos em 1992.

Além disso, também podemos encontrar intervenções em espanhol em faixas como Réquiem Para uma Flor, presente no álbum Por quem os Sinos Dobram de 1972, no qual notamos a fala: “Incapaces los hombres. Que hablan de todo. Y sufren callados.”. Vale acrescentar que este álbum contou com a participação do argentino Oscar Rasmussen em todas as faixas.

A música chilena passa ser alvo de interesse de Raul Seixas em seus últimos anos de vida. Em 1982 aparece pela primeira vez a referência a uma cantora chilena, a Violeta Parra. A cantora é citada na faixa Na Rodoviária, música de 1982: “[...] Violeta Parra e Nero iluminaram Roma. Assim como a vela [...]”. Parece que Raul conhecia bastante as críticas anticlericais presentes na obra de Violeta, por isso associa ela a Nero, que teria incendiado Roma para fazer música, como sugerem algumas versões. Para ele Violeta fazia música a partir de críticas a Igreja, que seria uma representante da velha Roma. Talvez seja um ponto de encontro de Raul Seixas e Violeta, pois ambos produziram críticas a Igreja em suas letras. Em uma entrevista dada Revista BIZZ, em 1987, ele comenta que:

[...] Estou descobrindo uma cantora, a Violeta Parra. Descobri esse ritmo e ainda vou fazer uma música com aquele feeling. Apesar de ser difícil aquela batida, difícil pra burro. Estou em cima disso. Ela é demais. [...]”.

Entretanto, dois anos depois ele faleceu, não podendo realizar a música com o feeling de violeta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esperamos ter conseguido, no decorrer deste texto, apresentar parte do referencial latino-americano da obra de Raul Seixas e sobre as implicações na construção da identidade latino-americana. Esperamos ter mostrado que Raul, como outros cantores de sua época, também esteve imerso no diálogo entre as nações vizinhas, catalisando, incorporando e compartilhando ao público elementos socializadores. No geral, ansiamos que, longe do texto encerrar a discussão, que ele impulsione outras discussões e estudos acerca do assunto.

REFERÊNCIAS

*Jeferson do Nascimento Machado possui graduação em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati. Atualmente é mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, PPGH-UNICENTRO, sob a orientação do Dr. Oseias de Oliveira. E-mail: jefersondonascimentomachado@gmail.com

JORGE, Cibele Simões Ferreira Kerr. Raul Seixas: um produtor de Mestiçagens Musicais e Midáticas. São Paulo, 2012.
PASSOS, Sylvio (Org). Raul Seixas Por Ele Mesmo. São Paulo: Martin Claret, 1993.
SEIXAS, Raul. As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Rio de Janeiro: Shogun Editora e Arte, 1983.
PAULA, Marcelo Ferraz de. A América Latina na Música Popular Brasileira: dois idiomas e um coro-canção. Rio de Janeiro: Darandina, 2011.

2 comentários:

  1. Boa noite, Jeferson!Primeiramente, parabéns pelo texto!

    Em relação as composições de Raul Seixas além das críticas ao clero, seria suas músicas uma ferramenta de conscientização daqueles que as ouviam em relação ao sistema politico da década de 70?

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  2. Bom dia, Eliane! Você levanta uma ótima questão.

    Sim, as músicas dele - assim como toda a grande arte daquela época - captavam e expressavam as contradições do sistema vigente, produzindo críticas e oferecendo possibilidades de sua superação. Raul Seixas, enquanto anarquista, chegou a idealizar uma "Uma sociedade alternativa", onde, conforme ele, "seria uma anti-cidade", com valores acráticos.

    No ano de 1973, Raul Seixas e Paulo Coelho gravam uma música com o nome Sociedade Alternativa, para o álbum Krig-Há. Então passaram a fazer turnês para este álbum. E durante os shows eram distribuídos um Manifesto da Sociedade Alternativa.

    Isso teve implicações sérias, tanto para Raul Seixas quanto para Paulo Coelho, pois um ano depois os dois foram intimados pelo Dops. Lá foram questionados sobre a tal sociedade e sobre brasileiros exilados no Chile. Além disso, prenderam também a namorada de Paulo Coelho, fato que agraviaria de forma irremediável o próprio relacionamento entre os dois.

    Paulo Coelho e sua namorado, depois de liberados do Dops foram capturados novamente. Quatro carros cercaram o táxis onde o casal se encontrava. Os dois foram encapuzados e colocados em carros separados. Paulo Coelho foi levado para a "geladeira" - nome da sela gelada onde o preso ficava nu - e foi torturado. Recentemente, devido as polêmicas do atual governo, Paulo Coelho resolveu comentar sobre o fato.

    posteriormente os dois tiveram que deixar o país. Isso afetaria bastante a vida deles.

    Vou deixar alguns links interessantes:

    https://catracalivre.com.br/colunas/dimenstein/o-hipnotizante-texto-de-paulo-coelho-conta-como-foi-torturado/

    http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/08/em-audio-de-1998-raul-seixas-relata-tortura-sofrida-durante-a-ditadura-militar

    https://secure.usc.br/static/biblioteca/mimesis/mimesis_v36_n2_2015_art_03.pdf

    Comentário do autor: Jeferson do Nascimento Machado

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