JEANE CARLA
OLIVEIRA DE MELO
1
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo
analisar, de modo preliminar, determinados marcadores da escrita do escritor
moçambicano Mia Couto, buscando
fazer uma análise com enfoque cultural, abrangendo os realces pós-coloniais em
sua literatura. Nesse sentido, Mia Couto é observado por este estudo como um
tradutor de realidades pós-coloniais, que, em sua obra ficcional é capaz de
tecer questões profundas acerca da identidade africana, da relação colonizador
e colonizado e do multiculturalismo.
Assim, a literatura tem, como uma de
suas funções, trabalhar como um campo de questionamento – e de reflexão –
cultural, possibilitando vislumbrar o imenso repertório cultural e simbólico
nas mais diversas sociedades. Dessa maneira, considerando-se a diversidade dos
estudos nos campos literário e historiográfico, procura-se
buscar a relevância dos estudos acerca das obras de um único autor, almejando
agregar sua coerência narrativa ao seu engajamento ideológico e discutindo,
assim, sua urdidura do mundo através da linguagem.
2 Os
estudos pós-coloniais na fronteira entre História e Literatura
Os estudos pós-coloniais fazem parte de um contexto mais
amplo de estudos culturais, que nasceram na virada dos anos 1950, na
Inglaterra. Os temas mais candentes destas análises giram em torno de questões
ligadas à raça, ao hibridismo, ao multiculturalismo e ao deslocamento do
sujeito na pós-modernidade.
O fenômeno da globalização também é analisado, no entanto,
no sentido de desvelar as contradições desse processo, sobretudo, nos países e
continentes pós-colonizados, respectivamente, a Índia e a África. No campo da
sociologia, os estudos empreendidos pelo indiano Homi Bhabha se configuram como
dois mais importantes e na literatura, destacam-se as obras de Mia Couto, autor
moçambicano bastante prolífico, que em seus livros, tenta pensar a complexidade
da sempre problemática identidade africana pós-colonial.
Tempos mais tarde, sobretudo nos anos 60 e 70, os estudos
feitos pelo anglo-jamaicano Stuart Hall, diretor do Centro de Estudos Culturais
da Universidade de Birmingham, contribuíram para a gama de reflexões acerca da
identidade cultural na pós-modernidade. Os estudos de Hall fogem um pouco da
abordagem economicista que dominou o pensamento acadêmico de sua época para
propor análises que fugiam à formalidade descritiva do estruturalismo indo ao
encontro da compreensão dos fenômenos da sociedade dita pós-moderna e seu
impacto nas relações sociais em um contexto mais amplo (FIGUEREDO, 2005).
Na contemporaneidade, os estudos culturais persistem na
afirmação do multiculturalismo, ocupando-se do estudo dos diferentes aspectos
da cultura e dialogando com outras disciplinas, como a antropologia, a
filosofia, a teoria literária, etc. De acordo com Vianna Neto (2005), o mundo
atual no qual o ser humano se movimento é confuso e instável. Nesse sentido, o
conceito de cultura deve ser repensado porque já não se consideram segundo esta
perspectiva, só os fenômenos produzidos pelos seres humanos, mas também todos
os fenômenos naturais considerados em seu valor simbólico e material. Segundo
Figueredo (2005, p. 34),
“os estudos pós-coloniais afirmam-se, por sua vez, quando a
idéia de modernidade, com a sua complexa herança estruturalista e formalista,
principia, nos finais da década de 70, a declinar. Atualmente, estes estudos
indicam, “o espaço teórico, político e poético reconhecido não só como o que
vem ‘depois’ do colonialismo, ou seja, depois dos acontecimentos históricos da
descolonização iniciados na segunda metade do século XX (...) mas também como o
‘pós’ pós-colonialismo: uma situação que, histórica e geo-politicamente, é já
uma situação de globalização em que as razões profundas do colonialismo,
juntamente com os conflitos pós-coloniais e a violência mundializada que
transforma as minorias em êxodos, abriram cenários novos”.
Desta forma, o conceito de pós-modernismo, ainda sem
encontrar um consenso entre os teóricos, busca um caminho no qual abunda uma
crise histórica sem precedentes. Diante deste quadro, criou-se um caminho
fértil para a insurgência de teorias pós-coloniais, que se referem
essencialmente às teorias descontrucionistas.
Conforme assinala Vianna Neto (2005), embora não possuindo
uma metodologia rigorosamente unificada, os estudos pós-coloniais têm um objeto
de investigação bem claro: querem estudar os confrontos entre culturas que
estão numa relação de subordinação, ou seja, estudar a marginalidade colonial,
considerada segundo uma perspectiva espacial, política e cultural.
Assim, com a crise dos paradigmas e das grandes narrativas,
torna-se necessário repensar o conceito de cultura, que vem acompanhado de sua
série de novas reflexões e de novas questões, que se mostram cada vez mais
urgentes de serem debatidas. Assim, tem cada vez mais lugar a noção de sujeito,
visto em suas dimensões identitárias políticas, sexuais e ideológicas. O antigo
conceito de estado-nação e de identidade são questionados à luz de conceitos
como o hibridismo, migração e mestiçagem. Aprofundando essas análises, Bhaba
(p. 11-12) afirma que
“Os conceitos de classe e gênero como particulares e
fundamentais categorias conceptuais e organizadoras deram o lugar à consciência
das especificidades do sujeito – raça, gênero, geração, situação institucional,
ambiente geopolítico, orientação sexual – intrínsecas a cada revindicação
identitária no mundo (...) É nos
interstícios – criados do sobrepor-se e do desenvolver-se das diferenças – que
são negociadas as experiências inter-subjetivas e coletivas de ‘pertença a uma
nação’, de interesse da comunidade ou de valor cultural”.
Segundo Canclini (2008), a cultura volta-se para a lembrança
dos marginalizados pelo eurocentrismo e transforma-se em um ato político
fundante de novas identidades. Desta forma, o campo literário torna-se também
transnacional. Portanto, o colonialismo surge cada vez mais como um
conceito-chave de suma importância para compreender o presente. Nesse sentido,
destacam-se as produções de Homi Bhabha (2007), Edward Said (1990) e Stuart
Hall (2002), que buscam repensar a contemporaneidade a partir desses novos
lugares sociais.
A partir dos anos 1980, os estudos pós-coloniais assumem uma
característica predominantemente literária, tendo como referência a produção
narrativa das ex-colônias e, sobretudo às obras escritas na língua do país
colonizador. De acordo com Said (1990), é na literatura onde se expressam
melhor os conflitos identitários próprios do período pós-colonial. Nesse
sentido, a obra do autor moçambicano Mia Couto representa uma das literaturas
mais representativas produzidas dentro deste quadro.
3. Imagens
da África na obra de Mia Couto: considerações
preliminares
As representações correntes que foram disseminadas sobre a
África, comumente, a punham no lugar da barbárie e selvageria. Tais imagens
corroboram de uma ótica eurocêntrica, que afirma o sujeito branco europeu em
detrimento da complexidade cultural do continente africano. Diante dessa
construção arbitrária, resta a indagação: como o sujeito africano se enxerga
diante de tais representações culturais sobre si? Como a África se defronta com
esse “outro” construído sobre ela mesma?
Com efeito, esse processo resultou em complexas negociações
e re-significações de identidades. É simplista demais analisar a questão apenas
de forma binária, o branco colonizado versus o negro colonizado. Nesse ínterim
podemos encontrar uma multiplicidade de categorias culturais que podem ser
trazidas à tona para se pensar os arranjos políticos, econômicos, culturais e
ideológicos do pós-colonialismo.
De
acordo com Figueiredo (2005), a troca de olhares sobre o outro e sobre a
própria identidade é um instrumento dinâmico, em constante reelaboração e com
múltiplas variáveis. A mudança de perspectiva em relação ao continente africano
teve início um pouco antes das lutas pelas independências, nos anos 1950 e
1960, estendendo-se até o final da década de 1970.
A
segunda metade do século XX assistiu a uma espécie de revolução nos estudos
sobre a África, em parte pela necessidade de construir “histórias nacionais”
para cada região "inventada" pelos europeus e reinventada pelos
africanos, em parte porque foram os intelectuais a perceberem a importância da
elaboração das identidades africanas dentro do continente e perante o mundo. O
retorno ao passado em busca de legitimação, de mitos fundadores e heróis passou
a ser uma forma de engendrar essas novas identidades e a literatura
pós-colonial provou ser profícua nesse aspecto (FERRO, 1998).
Também
é necessário pôr em relevo as implicações que as diferenças culturais entre
Portugal e Moçambique (o que chamaríamos de “conflito de culturas”) trazem para
esta última, sendo que o país descolonizado tem que deglutir e transformar
aquilo que outrora foi imposto e que agora é assimilado junto com sua cultura
própria – aglutinando à isso mestiçagens, trocas e assimilações. A relevância
da criação de uma cultura – e, logicamente, também de uma literatura –
propriamente moçambicana é muito cara aos escritores africanos lusófonos, sendo
que Mia Couto também está incluído nesse rol.
Antonio
Emílio Leite de Couto, mais conhecido como Mia Couto, jornalista, biólogo,
ex-militante político e descendente de portugueses, é hoje considerado uma das
vozes mais ativas no tocante à questão da identidade africana na
contemporaneidade. A partir do conjunto de sua obra, Couto lança olhares
contemporâneos sobre a África e seu país de origem, Moçambique.
Por meio da ficção, Couto consegue ir
além das questões políticas e sociais através da recorrência constante às
tradições africanas. O novo, para Mia Couto, deve se dar em comunicação com as
raízes africanas, contudo, o autor não desvela para o purismo ou enxerga a
tradição como um passado mítico e nostálgico. Mia Couto reinventa a identidade
africana a partir de uma retórica original, criando palavras novas assim como
novos recursos lingüísticos e semânticos.
Couto opta, em suas criações, por uma
linguagem fragmentada, um português amalgamado às expressões tipicamente
africanas, acabando com a chamada “pureza da língua portuguesa” quando intenta,
e consegue misturá-la aos dialetos moçambicanos, num insistente mesclar
cultural. Seus escritos demonstram um sujeito afinado com as questões
existenciais de sua época e, se recorre com freqüência à ficção, é na tentativa
de tatear essa identidade africana por meio da histórica de Moçambique, tornada
prosa em sua obra, sobretudo em Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra (2003), onde estão em jogo as
tradições moçambicanas, envoltas em um contexto acelerado de modernidade
capitalista.
Em entrevistas concedidas recentemente
durante sua passagem pelo Brasil, Mia Couto disse pretender ironizar e
questionar alguns arquétipos sobre o homem africano, principalmente a idéia de
pureza ou autenticidade, bem como os lugares-comuns em sua representação: as
crendices, a feitiçaria e a sexualidade. É na criação de um mundo de ficção,
mediado entre a prosa e a poesia que Mia Couto re-significa suas raízes. A
África para o escritor é o lugar de construção da identidade, da preservação da
memória e de questionamentos culturais que vão para além do binômio
colonizador/colonizado.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme, podemos perceber no conjunto
da obra de Mia Couto uma ironia que diz respeito ao ceticismo da história
contemporânea da África. Sobre isto, Vianna Neto (2005, p.43), pondera que,
“Por isso, tão amarga quanto a
consciência anti-colonial nas literaturas africanas de língua portuguesa é
também a consciência pós-colonial, na visão mais emblemática da perda
inocência, e confrontada com o começo do tempo da distopia: através de situações
que representam uma reedição dos objetivos e métodos do “antigo período”,
colonial, pelo “novo período”, o do pós-independência, é posto a descoberto o
modo como este também participa na “larga história de crueldade em que o
colonialismo é uma página a mais”.
Desta forma, As imagens criadas por
Couto para a representação de sua cultura, costumes e tradições são intensas,
de cores fortes, mas não procuram mostrar uma faceta penalizada da nação, antes
o contrário: representa as várias identidades da Moçambique atual, isso quer
dizer tanto nas suas tradições como no seu cosmopolitismo atual, abrindo as
portas na literatura para um revelar-se sempre novo.
BIBLIOGRAFIA
Jeane
Carla Oliveira de Melo é professora de História do IFMA Campus Alcântara e
doutoranda em História Social da Cultura pela UFMG.
BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2007
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas híbridas. São Paulo: EDUSP,
2008
COUTO, Mia. Um rio chamado tempo,
uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
FERRO, Marc. A manipulação da História no ensino e nos meios de comunicação. São
Paulo: Ibrasa, 1998
FIGUEREDO, Eurídice. Conceitos de literatura e cultura. Rio
de Janeiro: UFF, 2005
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,
2002
SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1990.
VIANNA NETO, Arnaldo Rosa. Multiculturalismo e
pluriculturalismo. In: FIGUEREDO, Eurídice. Conceitos
de literatura e cultura. Rio de Janeiro: UFF, 2005
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ResponderExcluirUm pergunta:
ResponderExcluirFalam de pós coloniais. Poderia explicar melhor este conceito?
Assina: Cesar Augusto Neves Souza
ExcluirSegundo Pezzodipane (2013, p.94), "a reflexão sobre o conceito pós-colonial, em primeiro plano, apresenta-se como a desconstrução das metanarrativas do discurso colonial, tão bem sintetizado por (Aime) Césaire. Num segundo plano, o pós-colonial é a revisão dos binarismos contidos nas interpretações dicotômicas que desconsideraram a importância da ação humana como elemento transformador no processo das inter-relações e seus desdobramentos".
ExcluirVer mais em: http://periodicos.ufes.br/simbiotica/article/view/5494
O seguinte trecho:
ResponderExcluir''Conforme assinala Vianna Neto (2005), embora não possuindo uma metodologia rigorosamente unificada, os estudos pós-coloniais têm um objeto de investigação bem claro: querem estudar os confrontos entre culturas que estão numa relação de subordinação, ou seja, estudar a marginalidade colonial, considerada segundo uma perspectiva espacial, política e cultural.''
No encontro de culturas, não seria portanto, importante revelar o conjunto de fatores que se somam entre si, adquirindo uma lógica de ganha- ganha para ambas as culturas? Não seria a ótica de dominador-subordinado como refere no texto uma forma de esvaziar a história e a autonomia da cultura diagnosticada como subjugada?
Agradecido, Cesar Augusto Neves Souza
Obrigada pela pergunta. Ainda que se questione algum possível maniqueísmo existente das relações entre colonizador e colonizador, resta claro a importância de perceber as relações assimétricas destes arranjos, o que lhe confere um inegável carater hierárquico. Nesse sentido, creio ser bastante delicado pensar por meio de uma lógica de "ganha-ganha", como se fosse possível simetrizar as diferenças entre as culturas.
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