Francivaldo Alves Nunes
Fonte: https://scontent.fbel2-1.fna.fbcdn.net/v/t1.0-9/59393541_2306678502695993_2155654441028550656_n.jpg?_nc_cat=102&_nc_ht=scontent.fbel2-1.fna&oh=b20a5680378d3bad188ae4213dd3ef20&oe=5D52F836
A charge “Campo de sangue” do historiador e cartunista Walter
Pinto, publicada em 29 de abril de 2019, ganhou as redes sociais, através do
Facebook, tão logo o presidente Jair Bolsonaro anunciou que pretendia, em curto
espaço de tempo, enviar ao Congresso brasileiro um projeto de lei que se
propunha a livrar de punição o produtor rural que fizesse disparos, através de
armas de fogo, ao que considera “invasor de terra”.
De acordo com o jornal Estadão, o anúncio foi feito em 29
de abril de 2019 durante discurso de abertura da Agrishow, em Ribeirão Preto,
interior de São Paulo, um dos mais importantes eventos do agronegócio
brasileiro. Para Bolsonaro, a proposta em gestação no governo,
se trata de uma promessa de campanha eleitoral. Destaca que a medida deverá
combater a violência no campo, um sentimento oposto ao que sugere a charge.
Sendo ainda responsável em cumprir a função de proteger os donos de terras e
suas benfeitorias, uma vez que entende que “a propriedade privada é sagrada e
ponto final” (Estadão, 29/04/2019).
A edição de 30 de abril de 2019 do jornal Diário do Pará
repercutiu o anúncio, reproduzindo parte da fala do presidente aos ruralistas.
“Vai dar o que falar, mas uma maneira que nós temos de ajudar a
combater a violência no campo é fazer com que, ao defender a sua propriedade
privada ou a sua vida, o cidadão de bem entre no excludente de ilicitude. Ou
seja, ele responde, mas não tem punição. É a forma que nós temos que proceder.
Para que o outro lado, que desrespeita a lei, tema vocês, tema o cidadão de
bem, e não o contrário” (Diário do Pará, 30/04/2019, Caderno B, p. 1).
A intenção da presidência da República é que a Câmara dos
Deputados discuta, ainda no
primeiro semestre de 2019, um segundo projeto de lei que autoriza a posse
de armas de fogo em todo o perímetro das propriedades rurais e
não apenas nas residências. Um acordo que já havia sido firmado em conversa com
o presidente da casa legislativa, Rodrigo Maia, deputado
pelo Partido Democrata (DEM) do Rio de Janeiro (Estadão, 29/04/2019).
A outra proposição a ser apresentada por Jair Bolsonaro é fazer
com que, ao defender a sua propriedade privada ou a sua vida, o “cidadão de
bem” entre no excludente de ilicitude.
No caso, faz referência ao artigo 23 do Código Penal Brasileiro, Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que exclui como prática
de ilícito: o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento
do dever legal e o exercício regular de direito (Brasil, 1940). De acordo com o
presidente “é a forma que nós temos que proceder para que o outro lado, que
teima em desrespeitar a lei, tema vocês, tema o cidadão de bem, e não o
contrário” (Estadão, 29/04/2019).
Diríamos que o excludente de ilicitude faz referência às hipóteses
em que qualquer pessoa pode cometer um crime sem ser punido por ele, como é o
caso da legítima defesa, entendida como uma situação em que uma pessoa está
prestes a sofrer alguma agressão e reage diante dela. Nesse sentido, o advogado
criminalista Allan Hahnemann Ferreira, professor do curso de Direito da
Universidade Federal de Goiás (UFG), em entrevista publicada no portal Brasil
de Fato, explica que o Código Penal prevê situações para o excludente de
ilicitude associadas ao estrito cumprimento do dever legal para casos
específicos relacionados à atuação das forças de segurança, mas não enquadra
nesse instituto casos relacionados à proteção da propriedade, como defende
Bolsonaro. A fala do presidente viria, portanto, num contexto extremamente
punitivo e coloca a propriedade acima do próprio bem vida, que é o bem supremo
protegido pela Constituição Federal, acrescenta Ferreira (Brasil de Fato, 30/04/2019).
O advogado criminalista Everton Seguro,
concorda que abranger a questão para situações que não estejam enquadradas em
casos de legítima defesa é atribuir mais valor a uma propriedade do que a vida
humana (Estadão, 29/04/2019). Significa também dizer que a medida, ao contrário
do que procura demonstrar na fala do presidente, em vez de permitir maior
segurança sobre a propriedade privada e o seu uso regular, acaba por estimular
a violência no campo, acirrando os conflitos rurais, tornando o espaço rural
“campo de sangue”, como ilustra a charge de Walter Pinto. Nesse caso, para Everton
Seguro “existem outros meios de se tratar as pessoas em invasões. É preciso
acionar a polícia e cabe ao juiz acelerar o processo para tirar as pessoas de
lá” (Estadão, 29/04/2019).
As reações chegaram ainda à sociedade civil
organizada. Em nota pública divulgada em 30 de maio de 2019, a Comissão
Pastoral da Terra (CPT), órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), repudiou a proposta. Na nota a entidade lembrou a questão legal
que circunda as ocupações de terra, geralmente promovidas por segmentos
populares que atuam em defesa da reforma agrária, como é o caso do Movimento
dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST).
“Na sua fala, o presidente reafirma mais de
uma vez que a propriedade é sagrada, sem se atentar para a ‘função social da
propriedade’, como reza a Constituição Federal (arts. 185 e 186). [...] Deixa
de lado, também, a forma como foram constituídas tais ‘propriedades’, muitas
delas frutos de esbulho e violências contra os povos tradicionalmente ocupantes
dessas terras, e outras tantas oriundas de grilagem” (CPT, 2019).
A nota expressa ainda que a proposta do
presidente é “irresponsável”, pois a entidade ressalta que, entre os anos de
1985 e 2018, por exemplo, 1.938 trabalhadores foram assassinados em conflitos
no campo, num total de 1.466 ocorrências registradas pela própria Pastoral, que
anualmente lança um relatório temático sobre o assunto.
A CPT (2019) sublinha ainda que os crimes têm
histórico de impunidade. “Dessas ocorrências, somente 117 responsáveis pelos
assassinatos foram a julgamento, tendo sido condenados apenas 101 executores e
33 mandantes. Por esses números, vê-se que o ‘excludente de ilicitude’ já
existe na prática”, critica a entidade, numa referência à expressão legal
utilizada por Jair Bolsonaro (CPT, 2019).
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) também teria condenado a proposta. O diretor nacional do MST, João Paulo
Rodrigues, ressalta que atualmente os mandantes de crime nas áreas rurais já
não são condenados pelas mortes no campo. Com esse anúncio, o governo acirra os
conflitos agrários e autoriza um proprietário matar qualquer um acusado de
invadir sua propriedade, denuncia João Paulo Rodrigues (Estadão, 29/04/2019).
Em nota de repúdio as declarações do
presidente, o MST e outras entidades vinculadas aos trabalhadores rurais
destacam que ao anunciar que encaminhará para a Câmara Federal um projeto de
lei, que dá ao proprietário rural total liberdade para atirar em caso de
“invasão” da sua propriedade sem que isto incorra em punição, o governo estaria
efetivamente defendendo e concedendo licença para matar, potencializando a
violência no campo. No caso, demonstrava que não se tem uma política pública
efetiva de segurança, e que um dos caminhos é armar a população e terceirizar a
segurança de forma ilegal, destaca a nota (MST, 2019).
Elisabete Maniglia (2005) colabora com as
reflexões de que a violação de direitos humanos em áreas rurais está vinculada a desigualdade social, aumento da pobreza e a falta de
políticas públicas de atenção ao homem do campo. Além disso, a ausência do
Estado como garantidor de direitos provoca ainda a criminalidade e a violência
(Maniglia, 2005, p. 5).
Considerando a violência como o constrangimento e ou a
destruição, quer seja física ou moral que são exercidas sobre os trabalhadores
do campo e aqueles que são aliados, diríamos que o enfrentando
de questões sociais como é o caso da concentração da terra e de riquezas não
devem ser exercido com ações de combate armado, nem com o uso da força policial
e muito menos com a divisão da sociedade entre os que merecem viver e os que
não merecem viver, como parece apontar a fala do presidente Bolsonaro.
Importante destacar que a violação dos direitos do homem
do campo, circunscrevem locais bem delimitados e se espalham no território
brasileiro, através de indivíduos ou grupos de indivíduos que são forçados a
saírem da sua terra, que não conseguem retomar seu território, que não são
beneficiados por reforma nos espaços rurais, consequentemente, deparam-se com a
violação de seus direitos à terra, ao trabalho, à moradia, à alimentação, à
água e ao direito de ir e vir (RECH, 2003, p. 119).
A violência tem sido muitas vezes usada para recobrir
situações como o sistemático descumprimento da legislação trabalhista, a falta
de condições mínimas de segurança nos locais de trabalho, os processos de
expulsão de trabalhadores de áreas por eles ocupadas, por vezes há gerações, a
exploração do trabalho escravo e infantil (MEDEIROS, 1996, p. 3). Neste
aspecto, a ausência de uma atuação sistemática do Estado e das instituições de
promoção da legalidade nestas áreas, se apresenta como motivadora de conflitos
e violência no campo.
Ao que se observa, a garantia da propriedade
da terra e a segurança jurídica em áreas rurais não se afirma no tratamento dos
movimentos e grupos de luta social pela terra e território como invasores, por
parte do Estado, nem também deve atuar de forma leniente para com fazendeiros e
grileiros que invadem e exploram propriedades públicas ou áreas de reservas
ambientais.
A luta pela terra e pelo território é um
exercício de legitimidade, portanto, dos movimentos sociais organizados, como
os trabalhadores rurais sem terra e posseiros, que têm o direito de reivindicar
politicas de reforma dos espaços rurais e de ocupar áreas improdutivas.
Inclui-se neste debate os povos indígenas e comunidades tradicionais e suas
estratégias de manutenção das terras ocupadas.
Ao tomar partido autorizando e fomentando que
proprietários usem da força e a violência para defender suas propriedades o
Estado pode contribuir para a intensificação dos conflitos no campo por
favorecer grupos empresariais e grandes senhores da terra. Nesse sentido, como
adverte José de Sousa Martins (1991), a segurança nas áreas rurais deve ser de
responsabilidade do Estado e não dos particulares. Para este autor, quando o
Estado não cumpre com suas funções legítimas de proteção, acaba por multiplicar
os atos violentos contra os trabalhadores rurais e amplia a insegurança das
áreas rurais, inclusive as propriedades de terra já devidamente regularizadas
(Martins, 1991, p. 50.
Importante destacar que, ao mesmo tempo em que
a Constituição Federal no artigo 5°, inciso XXII, defende o direito de propriedade, também revela no mesmo artigo, inciso XXIII, que a terra deve ter função social. No caso, a função social é
cumprida quando a propriedade rural atende aos requisitos quanto ao
aproveitamento racional e adequado da terra, utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, observância das
disposições que regulam as relações de trabalho, assim como, a exploração que
favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (Brasil, 1982).
Como expressa José Reis dos Santos Filho
(2001), quando movimentos e grupos de luta pela terra e por território se
organizam contra a concentração agrária ou pela garantia de seus territórios,
eles estão lutando para que os direitos constitucionais sejam assegurados.
Neste aspecto, a defesa da propriedade privada não está acima do direito dos
camponeses ou dos povos indígenas e comunidades tradicionais produzirem e
reproduzirem seus meios de vida.
De acordo com MST e outras entidades
vinculadas a defesa dos direitos dos trabalhadores rurais, há um princípio
ético e humanista que defende que a concentração de terra torna-se imoral
sempre que esteja descumprindo o princípio maior da sua função social, o que,
portanto, se sobrepõe ao sentido da propriedade privada em si mesma (MST,
2019).
A fala do presidente provoca o entendimento
equivocado de que se pode subtrair do
Estado, o poder de dirimir os conflitos, de investigar, de julgar, de punir,
incentivando a “justiça com as próprias mãos”. Para Medeiros (1996), esta
subtração é o principal fator da violência no campo, pois tem sido muitas vezes
usada para recobrir situações de descumprimento da lei. Esse quadro revela uma
face da violência, que demonstra “o profundo comprometimento do Poder
Judiciário com os interesses ligados à propriedade da terra, o que coloca um
impasse nessas situações de disputa” (MEDEIROS, 1996, p. 127).
Isso implica relacionar um conjunto de
práticas do não reconhecimento dos trabalhadores rurais como portadores de
direitos, e sim como sujeitos submissos por coerção diante das formas de
dominação fundadas em procedimentos aceitos pela sociedade. Sob este aspecto a
Constituição Federal não garante salvaguarda a nenhum cidadão sob hipótese
alguma, nem tão pouco autoriza aos proprietários de terra proteger seus bens
sem a mediação das leis e do Estado.
Sobre a fala do presidente há questionamentos
até mesmo no setor produtivo vinculado ao agronegócio e empresários rurais,
ruralistas. De acordo com Luiz Roberto Barcelos, presidente da Associação
Brasileira dos Produtores Exportadores de Frutas e Derivados, Bolsonaro teria
falado de algo que já estava na lei. “Por
mais que seja errado cometer invasões de terra, também não acho certo que a
pessoa não responda por isso. Não se pode ter abusos, nem de um lado nem do
outro”, destaca Luiz Barcelos (Estadão, 2019).
Não há dúvidas que ao discursar na abertura da
Agrishow, Bolsonaro reafirmou sua intenção de encaminhar modificações na legislação
de armas de fogo. Uma das mudanças propostas pelo presidente já
está no congresso e deve tramitar em regime de urgência. O governo aproveitará
o projeto de lei do deputado Rogério Peninha, do Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), de Santa Catarina, que autoriza
posse de armas nas propriedades rurais.
Trata-se do Projeto de Lei (PL) nº 377 e está
pronto para análise na Câmara dos Deputados. Originalmente, o projeto previa
que o registro da arma de fogo dê o direito de posse e porte “no interior de
sua residência, propriedade rural ou dependência destas”. Outros deputados que
formam a base de apoio ao governo, vinculados ao Podemos e Partido Social liberal
(PSL), já solicitaram a inclusão do projeto na ordem do dia para votação
(Estadão, 2019).
Quanto ao projeto de lei que trata do
excludente de ilicitude ainda está sendo elaborado. O porta-voz da Presidência,
general Otávio do Rêgo Barros,
afirmou que, em breve, será enviado ao Congresso assim que “esses estudos
estiverem conclusos”, sem dar um prazo para isso (Estadão, 2019).
Em 7 de maio de 2019, o presidente Bolsonaro
cumpria a promessa feita na Agrishow, assinando um decreto para alterar as
regras sobre o uso de armas e munições, sendo este assinado em uma cerimônia no Palácio do
Planalto e publicado no Diário Oficial da União do dia seguinte. Entre as
principais medidas do decreto, estão a permissão para o proprietário rural com
posse de arma de fogo utilizar a arma em todo o perímetro da propriedade, como
destaca o ítem I, § 1º, do artigo 10 (Brasil, 2019B).
Com o anúncio na feira agropecuária e o
decreto, se observa, a princípio, que o presidente buscava agradar os grandes
proprietários de terra. No entanto, ao permitindo que por sua própria vontade
defendesse suas terras, acabou por tornar o espaço rural brasileiro ainda mais
inseguro, potencializando as possibilidades de conflito, inclusive armado.
A defesa da grande propriedade rural pela presidência
da República, portanto, ganhou os contornos de possibilidade real de aumento da
violência no campo.
Referências
Doutor em História Social pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). É professor na Universidade Federal do Pará, atuando na
Faculdade de História do Campus Universitário de Ananindeua. E-mail:
francivaldonunes@yahoo.com.br.
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BRASIL. Presidência da
República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Decreto-Lei nº
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Excelente texto professor. É muito curioso a relação que a sociedade brasileira tem com seu espaço rural, podemos ver facilmente a carga negativa que os movimentos sociais em prol do direito à moradia, seja no ambiente urbano ou rural, possuem quando eles lutam por direitos que estão assegurados pela nossa Constituição.
ResponderExcluirEssa carga negativa que os movimentos possuem somam-se a diversos ataques violentos que não são solucionados - quando investigados, devemos lembrar, - em todo o Brasil. Ainda que os centros urbanos vivam uma dinâmica diferente no que diz respeito ao assunto, notamos um Brasil inteiramente diferente no espaço rural, que mantém as antigas relações coronelistas onde o Estado não se faz presente e o trabalhador rural fica à mercê da própria sorte.
Minha pergunta diz respeito a atuação de presidentes passados (pensando à partir de 2002) sobre o combate a violência no campo. Quais posturas foram adotas por outros presidentes brasileiros para combater a violência no campo e como podemos compreender o retrocesso nessas políticas públicas?
Ouvinte: Kevin Lucas Alves Vieira.
Olá, professor Francivaldo Alves.
ResponderExcluirGostaria de parabenizá-lo pelo texto.
Sou professor de História na educação básica, e acredito ser necessário nós produzirmos sobre os fatos do tempo presente. Também sou indígena e acredito que os discursos como os do presidente Bolsonaro defendem a institucionalização de uma violência que já existe no campo.
Ouvinte: Cássio Júnio Ferreira da Silva.