CONSIDERAÇÕES SOBRE UM DIÁLOGO ESSENCIAL: OS MANUAIS ESCOLARES COMO VESTÍGIOS À HISTÓRIA DAS DISCIPLINAS ESCOLARES


Felipe Augusto dos Santos Vaz


A história das disciplinas escolares enquanto campo de pesquisa

Por muito tempo desprezada enquanto campo investigativo, a história das disciplinas escolares passou a despertar o interesse por parte dos intelectuais apenas no decorrer da década de 1970 - num contexto profundamente marcado pelos entusiasmos que desencadearam uma série de problematizações acerca dos aspectos que permeavam o campo educacional.

Decerto, buscando promover uma nova forma de olhar para a escola do passado - “(...) permitindo perceber que a história da educação vai além da história dos ideários e dos discursos pedagógicos” (SOUZA JÚNIOR; GALVÃO, 2005, p. 393) -, estas problematizações impulsionaram, "(...) em diferentes países quase que simultaneamente (...)” (Ibid, p. 393), significativos debates – cujos propósitos trouxeram à tona "(...) a gênese e os diferentes momentos históricos em que se constituem os saberes escolares, visando perceber a sua dinâmica, as continuidades e descontinuidades no processo de escolarização" (BITTENCOURT, 2003 apud Ibid, p. 393).
        
Destes debates, duas vertentes se destacaram como as mais significativas: aquela que, desenvolvida por Yves Chevallard, toma a disciplina escolar como resultante de uma transposição didática; tal como aquela que, pensada por André Chervel, a considera como fruto de um conhecimento relativamente autônomo.
        
Com efeito, quando analisada detalhadamente, a explícita diferença entre estas perspectivas desvela, em certa medida, a complexidade que marca os argumentos que cada qual produz. Atentando-se à primeira dessas vertentes, para Chevallard a transposição era compreendida como a transformação do conhecimento erudito em conhecimento escolar – processo que se desencadearia em diferentes níveis e instâncias. Nesse sentido, o saber que compõe a disciplina seria visto como algo elaborado no âmbito externo à escola, cabendo ao professor a necessidade de melhor adaptá-lo, tornando-o mais assimilável aos alunos.
        
Não tardaria para que uma série de críticas passasse a se desencadear em relação a tais colocações. Estabelecidos por intelectuais como André Chervel, Ivor Goodson, Antônio Viñao Frago e tantos outros, estes pareceres denunciavam o exercício de vulgarização do conhecimento que a transposição didática acabava por colocar em prática. Para além, eles evidenciaram a responsabilidade depositada sobre o ofício docente acerca do sucesso ou fracasso da transmissão dos saberes, bem como destacaram o fato de tal lógica interpretar a escola apenas como um "(...) lugar de recepção e de reprodução do conhecimento externo, variando sua eficiência pela maior ou menor capacidade de transpô-lo e reproduzi-lo adequadamente” (BITTENCOURT, 2008, p. 37). 
        
Além de se disporem a apresentar tais considerações, certo é que os críticos da transposição didática também propuseram outras leituras sobre a formação e legitimação do conhecimento das matérias escolares. André Chervel, por exemplo, tomado como referência básica a muitos outros historiadores que se dispõem a investigar as historicidades das disciplinas, evidenciou que estas podem ser interpretadas como produtos das próprias experiências cotidianas que pautam a cultura escolar - engendrada no interior das escolas de maneira complexa e relativamente autônoma.
        
Essa relatividade se pautaria pelo fato de as instituições escolares se apresentarem emancipadas em relação à academia, mas, ainda assim, se encontrarem submetidas às disputas estabelecidas no âmbito do social.
        
Tais disputas, protagonizadas por diferentes sujeitos inseridos, cada qual, em um lugar de poder específico, se justificam pelos anseios em autenticar determinados objetivos às escolas - ratificando, concomitantemente, certos modelos de cultura. Ademais, deve-se pontuar que tais modelos carregam consigo um conjunto de representações e práticas que visam autenticar determinadas visões de mundo que, então, seriam propagadas por meio das instituições de ensino.
        
Sem dúvida, este processo de difusão é observado quando das práticas docentes em sala de aula – que, assim como a escola, manifestam uma relativa autonomia. Tal situação se esboça, por exemplo, quando das apropriações que determinados professores fazem dos conteúdos apresentados pelos currículos oficiais – objetos que pretendem corroborar certas noções sobre a realidade, mas que nem sempre são trabalhados da forma como seus elaboradores esperavam que o fossem.    

Estas apropriações, que constituem aquilo que Sacristán (2013) compreende como "currículo real” variam conforme as percepções que os docentes possuem acerca de suas experiências em sala de aula – produzindo, assim, novos sentidos e pensando, certamente, novas fins ao ensino e à escola.  

Tais finalidades, que perpassam tanto os programas curriculares prescritos quanto os reais, podem ser compreendidas como uma totalidade composta pelos vínculos entre as “finalidades de objetivo” e as “finalidades reais” - que, com efeito, corroboram a definição dos próprios propósitos que as disciplinas escolares têm em si.

Interpretados por Circe Bittencourt como resultado da articulação entre os objetivos educacionais gerais e os objetivos instrucionais específicos, estes propósitos estabelecem “(...) uma teia complexa na qual a escola desempenha o papel de fornecedora de conteúdos de instrução (...)” (BITTENCOURT, 2008, p. 42)

Tais conteúdos tem origem nas próprias matérias escolares e podem ser interpretados, segundo Chervel, como o elemento de maior relevância na constituição de uma disciplina. Pautado por um "(...) corpus de conhecimentos providos de uma lógica interna, articulados em torno de alguns temas específicos, organizados em planos sucessivos claramente distintos e desembocados em algumas idéias simples e claras (...)” (Chervel, 1990, p. 203), eles também garantem a distinção entre o aprendizado escolar e as outras formas de aprendizagem - uma vez que, para isso, necessitam de determinados métodos que garantam seu ensino.

Compreendido como outro elemento significativo e integrante da disciplina escolar, os métodos de ensino-aprendizagem podem ser definidos como um "(...) conjunto de ações, passos, condições externas (...)" (PIMENTA; CARVALHO, 2008, p. 9) as quais viabilizam os delineamentos do diálogo entre docentes e discentes - "(...) ou ainda, do mundo adulto com as novas gerações, com o nível de interesse e motivação dos alunos" (BITTENCOURT, op. cit., p. 43).

Tal motivação encontra respaldo no processo de seleção do conteúdo realizado pelo professor, que busca textos e narrativas que possibilitam ao aluno se "(...) engajar espontaneamente nos exercícios nos quais ele poderá expressar sua personalidade" (CHERVEL, 1990, p. 205). Para além, pontua-se que alguns destes alguns exercícios apresentam, de acordo com Chervel, um regime próprio de especialização, concebido em vista da indispensabilidade em se empregar certas formas de avaliação do conhecimento adquirido.

Interpretadas como outro constituinte fundamental de uma disciplina, tal como meios nos quais se situa o maior poder de controle por parte dos professores, as avaliações manifestam uma significativa variabilidade, pois são pensadas de maneira concomitante "(...) com um tipo determinado de compreensão da disciplina escolar: tem certas características se a disciplina escolar é entendida apenas como transmissora de conteúdos, e outras se a disciplina escolar é concebida como produtora de conhecimento" (Ibid, p. 44).

Contudo, não obstante esta sujeição dos métodos avaliativos em relação aos modos pelos quais as matérias são organizadas, certo é que, quase sempre, elas podem interferir de maneira significativa na manutenção ou mesmo nas mudanças que incidem sobre os dois principais elementos que compõem aquilo que Chervel (1990) considerara como o núcleo de uma disciplina: os conteúdos e métodos - estando tais componentes intrinsecamente articulados com o próprio conceito de aprendizagem.

Para mais, ressalta-se que este núcleo disciplinar legitima não apenas a construção, mas também as permanências das matérias escolares - que, apesar de estabelecerem determinados mecanismos de perpetuação, se valem, do mesmo modo, de outros meios que corroboram, no mais das vezes, a tal permanência: como, por exemplo, através dos livros didáticos. 

Os manuais escolares e a história das disciplinas escolares
        
Objetos de cultura complexos, pautados por uma série de interferências, os livros didáticos carregam consigo um conjunto de determinadas representações do mundo social. Depositários de uma significativa centralidade nas práticas pedagógicas; bem como importantes dispositivos de normalização da cultura, estas ferramentas de ensino são podem ser encarados como mercadorias de uma pujante indústria cultural, direcionada a atender um nicho específico do mercado - mais precisamente, do mercado escolar.

De certo modo, estas considerações apenas sustentam seus sentidos quando incluímos a análise destes instrumentos “(...) no âmbito mais amplo da história das disciplinas (...)" (FRAGO, 2008, p. 192) - cujas reflexões estabelecem estreitas relações com o domínio de investigação, intitulado por Alain Choppin, como a história dos livros e das edições didáticas.

Marcadas por um eminente diferencial no grau de influência que o campo das disciplinas escolares exerce sobre o dos estudos ligados aos livros didáticos, estas relações colocam em evidência que a história das edições didáticas não apresenta, na plenitude de seus aspectos, vínculos estáveis com a história das disciplinas - que, por seu turno, opera em sua totalidade, maior domínio sobre as investigações acerca dos manuais escolares.

Em certa medida, estes apontamentos acabam por justificar o repúdio à "(...) idéia de que a história de uma disciplina se reduz, no que se refere à análise de seus conteúdos, à dos manuais utilizados em seu ensino (...)", ou então, a noção de que seja plausível "(...) fazer a história de uma disciplina sem analisar seus livros de texto ou o material empregado em seu ensino" (Ibid, p. 192).  

Por certo, este último apontamento dispõe de uma profunda insustentabilidade graças ao fato de os livros didáticos apresentarem, conforme já pontuado, o corpus de conhecimentos que determinam o conteúdo de uma disciplina, bem como os exercícios por elas definidos - comportando-se, então, como fontes fundamentais à sua compreensão, dado que se pautam como importantes veículos à sua difusão e perpetuação.

Contudo, torna-se válido lembrar que esta perenidade não deve ser compreendida, única e exclusivamente, como resultante da capacidade que os manuais didáticos apresentam na transmissão dos conteúdos disciplinares - afinal, a própria disciplina concebe certos mecanismos que auxiliam ao processo de sua preservação. Promovendo a criação de determinados modelos, cujas bases servirão de molde à produção das obras didáticas, tem-se que tal circunstância apresenta aquilo que Chervel (1990) intitulara como “fenômeno de vulgata”, o qual os

“(...)manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso. Os conceitos ensinados, a terminologia adotada, a coleção de rubricas e capítulos, a organização do corpus de conhecimentos, mesmo os exemplos utilizados ou os tipos de exercícios praticados são idênticos, com variações aproximadas” (CHERVEL, 1990, p. 203).

De certa forma, a julgar por estas reflexões, se por um lado o livro didático transmite, de maneira repetitiva, os conteúdos e os exercícios de uma determinada disciplina - cuja vulgata acaba por se cristalizar -; por outro, ele também pode suscitar as transformações consequentes destas variações referenciadas - proporcionando, até mesmo, a publicação de novos modelos de manuais, depositários dos novos prismas estabelecidos pela nova vulgata.
        
Compreender os aspectos que delineiam estas vulgatas e, concomitantemente a isso, dos livros escolares “(...) permite acompanhar as transformações no campo pedagógico e as tendências metodológicas que, em diferentes épocas, presidiam os processos de ensino-aprendizagem” (LUCA, 2006, p. 3) - os quais as disciplinas escolares figuram pautadas por uma significativa relevância. Nesse bojo, se estas disciplinas podem ser interpretadas, segundo Ivor Goodson, como significativos blocos de um mosaico cuidadosamente construído - que caracteriza o sistema educacional -, se torna inequívoco considerar que os livros didáticos, por sua vez, correspondam às massas que justapõem, harmonicamente, tais blocos. Tomados como verdadeiros indícios da cultura escolar, eles corroboram às percepções de como o mundo da educação esteve - e ainda está - organizado. 

Referências bibliográficas
Mestrando em História pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH - Unifesp).

BITTENCOURT, Circe. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, pp. 177-229, 1990. Disponível em: https://moodle.fct.unl.pt/pluginfile.php/122510/mod_resource/content/0/Leituras/Chervel01.pdf. Acesso em: 10 jan. 2019.
FRAGO, Antonio Viñao. A história das disciplinas escolares. Revista brasileira de história da educação, Maringá, n. 18, pp. 175-215, 2008. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/277869370_A_historia_das_disciplinas_escolares. Acesso em: 15 jan. 2019.
LUCA, Tania Regina de. O debate em torno dos livros didáticos de História. Disponível em: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/46193/1/01d21t10.pdf. Acesso em: 09 fev. 2019.
PIMENTA, Sônia Almeida; CARVALHO, Ana Beatriz Gomes. Didática e ensino de geografia. Campina Grande: EDUEP, 2008.
SACRISTÁN, José Gimeno. O que significa currículo? In: ______ (org.). Saberes e incertezas sobre o currículo. São Paulo: Penso Editora, 2013.
SOUZA JÚNIOR, Marcílio; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História das disciplinas escolares e história da educação: algumas reflexões. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, pp. 391-408, 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v31n3/a05v31n3.pdf. Acesso: 16 jan. 2019.

3 comentários:

  1. Gostaria que você falasse um pouco mais a respeito do saber que o manual didático porta. Nesse sentido, podemos considerar o livro como portador de conhecimentos autônomos ou é apenas uma vulgarização das ciências de referência? Como você pensa essa questão?
    Jeane Carla Oliveira de Melo

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    1. Olá Jeane, boa noite!

      Bem, seu questionamento é bastante complexo e muito interessante porque permite pensar a relação entre os livros didáticos e as disciplinas escolares a partir de um outro ângulo que vai além das possibilidades de compreensão dos usos empregues aos manuais: a saber, as particularidades de sua produção - afinal, você está se referindo aos conteúdos (às representações) que ele carrega consigo.

      Pelo que consigo perceber, apesar de compreender que as disciplinas se desenvolvem a partir da relativa autonomia apresentada pela cultura escolar - e reforço a ideia desta relatividade, pois isso faz toda diferença -, vejo que os manuais didáticos tendem a apresentar a seus leitores uma vulgarização, ou melhor, uma simplificação de um conhecimento pre-definido - colocando em prática, portanto, a transposição de um certo modelo de saber. De certo modo, este posicionamento se sustenta mesmo reconhecendo a possibilidade que os livros escolares manifestam em reforçar e/ou modificar a vulgata de uma disciplina - o que nos leva a pensar que ele também propagaria um saber relativamente autônomo -; bem como a ideia de que, de uns anos para cá, houve um esforço à veiculação de um conteúdo que buscasse evidenciar elementos que, em tese, se pautariam como parte do cotidiano social de professores e alunos - aspecto que marcaria uma tentativa de aproximação entre o saber difundido e a realidade destes sujeitos; ou que poderia ser também, em certa medida, interpretado como reflexo do referido conhecimento promovido pelas práticas docentes, uma vez que esta leva em consideração a necessidade de se atentar às particularidades da realidade dos discentes, relacionando-as com o saber consolidado pelos programas curriculares e criando, dessa forma, determinadas significações.

      A produção dos livros didáticos apresenta uma significativa complexidade que se justifica pela presença de uma série de etapas e sujeitos empenhados em legitimar certos discursos que, por sua vez, precisam estar em consonância com os crivos estabelecidos pelos órgãos de avaliação - que regulamentam o deve, ou não, circular. Esta regulamentação faz com que os manuais sejam produzidos a partir dos modelos estabelecidos pelo currículo, havendo muito pouca ou qualquer aprofundamento/problematização sobre os assuntos que se dispõem a tratar.

      Felipe Augusto dos Santos Vaz

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  2. Boa noite Felipe Augusto!! Te parabenizo pelo seu excelente texto, que levanta inúmeras questões e dialoga com importantes autores, em especial André Chervel e Circe Bittencourt...que se tornaram quase que obrigatórios quando o assunto é história da Disciplinas escolares em articulações com manuais escolares. Concordo com o que diz Ivor Goodson (que lamentavelmente não foi listado nas Referências bibliográficas), se deve considerar que os livros didáticos, "tomados como verdadeiros indícios da cultura escolar, eles corroboram às percepções de como o mundo da educação esteve - e ainda está - organizado". A educação brasileira que o diga, em especial a disciplina de História. Parabéns!!!
    Por Jessé Gonçalves Cutrim

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