CAPOEIRA PARANAENSE (XIX-XX): ENTRE O LÚDICO E O MARCIAL


*Jeferson do Nascimento Machado



INTRODUÇÃO

Este texto é um fragmento das discussões que estou realizando na minha dissertação: “História da Capoeira na cidade de Ponta grossa: entre relatos e fotografia”. No I Simpósio On Line de História dos Ananins (2018) eu publiquei um esboço sobre a história da Capoeira no Estado do Paraná, na qual dividi parte das descobertas realizadas até naquele momento. Lá eu busquei discutir a sua chegada em Curitiba e o seu desdobramento para as outras cidades. Entretanto, durante aquela discussão eu tomei a década de setenta como o início da Capoeira paranaense. Posteriormente, em contanto com novos documentos, notei que as referências a Capoeira eram mais antigas, existindo referências a ela desde o século XIX. Assim sendo, aproveito este segundo evento para atualizar a discussão realizada no primeiro evento, bem como para inserir outras questões que acreditamos serem importantes.

A CAPOEIRA DO SÉCULO XIX

Ainda não há dados suficientes, mas existem indicativos que a Capoeira tenha sido praticada no Paraná durante o período da escravidão. É uma hipótese possível. Por exemplo, a memória coletiva presente no Quilombo de Água Morna-PR faz referência a uma possível capoeirista, que teria vivido no contexto da Guerra do Paraguai (1864 - 1870). Conforme relatos de Djair Alves de Lima, descendente quilombola, essa capoeirista se chamava Mãe Romana e teria lutado “[...] na Guerra com navalha na mão e no vão dos dedos dos pés”. O uso de navalhas nos pés era algo comum aos capoeiristas deste período e destaca o caráter marcial da capoeiragem.

Outro elemento que alimenta a nossa hipótese está relacionado ao Estado de Santa Catarina, pois ali existe referência a um escravo capoeirista. Este escravo se chamava Preto Desidério e ficou conhecido pelas constantes referências que Lauro Müller fazia a ele. Müller se referiu a ele em diversos jornais (DIÁRIO DO PARANÁ, 1958; O ESTADO DO PARANÁ, 1926; O ESTADO, 1934; PARANÁ NORTE, 1948), sempre acrescentando que aprendeu Capoeira com ele, nos finais do século XIX.

Todavia, devemos acrescentar que temos apenas hipóteses sobre a Capoeira nesse período. Por outro lado, podemos afirmar que já havia Capoeira no final no do século XIX, pois encontramos uma referência direto a ela no Diário da Tarde de 1889. Neste jornal encontramos a seguinte uma notícia sob o título de “Brinquedos e Cacetadas”, onde é narrado que:

“Brincavam hontem Filippe Gonçalves e Izidoro Mendes na rua Borges de Macedo, ás dez horas da noite. Consistia o brinquedo em jogos de capoeiragem.

Dahi á momentos chegou ao local Manoel Ramos que acreditando tratar-se de uma briga, manejou o cacete que possuía e deu forte cacetada em Filippe, no lado esquerdo da fronte, prostanto-o em seguida.

O ferido poude ainda descarregar o seu revolver contra o agressor; a bala alcançou-o ferindo-o levemente.

Ambos estão presos “(DIÁRIO DA TARDE, 1899, s/p.).

Note-se que o termo usado para se referir a Capoeira é “jogo” e o título da matéria introduz a palavra “brinquedos”, buscando apontar um aspecto mais lúdico e menos marcial da prática. Interessante observar que o capoeirista não usou de golpes de Capoeira para se defender e sim de um revólver.

A CAPOEIRA DO SÉCULO XX

Já na entrada do século XX surge a primeira referência ao jogo de Capoeira desse século, que foi vinculada ao Diário da Tarde, no qual aparece a seguinte notícia:

“As 7 horas da manhã, deu-se hoje na rua Barão do Serro Azul, um fato escandaloso, de que a polícia não teve conhecimento. Um soldado embriagado, jogava capoeira com uma mulher. Conclusão: tabefes e sangue” (DIÁRIO DA TARDE, 1900).

Essa referência destaca o caráter lúdico da Capoeira, que aparece na concepção “jogo”, o caráter marcial dela expressado nos “tabefes e sangue” e o aspecto da apropriação dela enquanto instrumento de opressão.

Se no ano de 1900 ela foi usada como instrumento de opressão, no ano de 1979 ela foi usada enquanto instrumento de libertação. O Diário do Paraná (1979) noticiou o seguinte:

“O barulho na boate da Nadir, na Vila Guaíra, era prenúncio de muita confusão, na noite de anteontem. Logo após às primeiras horas da madrugada, não deu outra. A bailarina Joana da Silva, uma bailarina de 23 anos, que luta capoeira e sabe brigar como qualquer homem, quase decapitou seu parceiro João Fernandes, no interior de um dos quartos do prostibulo.

A mulher, que diz saber ser “danada”, quando preciso, foi presa e autuada em flagrante na delegacia do 8º Distrito policial onde confessou o crime. Segunda ela, “ele quis me matar, quis me “amassar” muito e eu tive que me defender”. Para ela, “ele deve ser maníaco, logo que nós entramos no quarto ele foi me acertando um soco no olho e me derrubando no chã” [...] mesmo assim, conseguiu dar uma gravata e cravar a faca no pescoço da vítima” (DIARIO DO PARANÁ, 1979, p. 10).

O desfecho do caso parece ter tornado Joana Silva, que era vítima, em criminosa. Mas fato é que ela soube usar da Capoeira com maestria, fazendo despontar mais uma vez o caráter marcial e de autodefesa da Capoeira.

Posteriormente, em 1983, outro capoeirista, dessa vez um mestre, também utilizou da Capoeira como autodefesa, fomentando o aspecto de luta da Capoeira. Conforme o Diário da Tarde (1983, p. 4):

“O mestre de capoeira Oriel Feliciano Lopes, estava no interior de um bar na Marechal Floriano, 7043, quando pela madrugada foi provocado e agredido pelo militar Orvaldo Gonçalves Ferreira, de 33 anos, que portava um cabo de aço. Na briga porém acabou levando a melhor e o militar precisou ser medicado no Pronto-Socorro do Cajuru, A delegacia de Homicídios foi comunicada da ocorrência e passou o caso para a delegacia do 7.º Distrito.”

Assim, até aqui fica notável a faceta de capoeira-luta, de arte-marcial da Capoeira, presente na capoeiragem paranaense.

O jornal O Dia de 1951, fez uma segunda referência a Capoeira. Essa alusão pode ser verificada na notícia sobre um lutador, conhecido como Mossurunga, que estava fazendo uma série de lutas no norte do Paraná. Um de seus adversários, segundo o jornal foi “o maior capoeira do Paraná”, no entanto, não cita o nome: “trouxe 14 vitórias e 1 empate, em Mandaguari, lutou com o maior capoeira do Paraná, venceu no 2º round.” (O DIA, 1951, p. 6).

Outra referência a presença de capoeiristas na cidade de Curitiba data de 1962, quando alguns capoeiristas estiveram acompanhando a peça O Pagador de Promessas, dirigido por José Renato. Estes capoeiristas fizeram apresentações no Teatro Guaíra durante os quatro dias que a peça esteve na capital. Isso aconteceu em julho durante os dias 13, 14, 15 e 16, do ano de 1962. A peça foi anunciada pelo Diário do Paraná (1972, p. 2), que descreveu que junto com a peça haveria “uma roda de capoeira com sete integrantes”. Devemos frisar que essa peça ajudou bastante na divulgação da Capoeira, especialmente, no aspecto mais lúdico, já que era parte de uma peça teatral.

Posteriormente, passaram pela cidade Mestre Lampião de Goiás (Eurípedes) e Alabamba. Mestre Lampião de Goiás, passou pela cidade no ano de 1970. Depois dele, passou Mestre Alabamba, que fez alguns shows no Teatro Guaíra, em 1972 (SERGIPE, 200). Ali no teatro ele encontrou alguns alunos de Mestre Lampião que haviam sido recém iniciados mas, conforme Sergipe (2006), ele não realizou nenhum projeto na cidade. Logo mais, no ano de 1973, o próprio Mestre Sergipe aportou na cidade e começou a desenvolver a prática institucionalizada, dando início a uma outra etapa da história da Capoeira paranaense.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste texto trouxemos algumas discussões tratadas na dissertação e buscamos atualizar o texto publicado no primeiro Simpósio. Assim, esperamos ter exposto outros elementos da trajetória da capoeira no Estado do Paraná, mostrando o seu aspecto lúdico e marcial.

Em geral, ansiamos para que este texto traga alguma contribuição os interessados nos estudos sobre a Capoeira e que o ele seja um instigador de eventuais interessados, podendo também servir de suporte para professores da rede pública do Paraná que busquem abordar a temática negro e da própria Capoeira no Estado.


FONTES E REFERÊNCIAS

*Jeferson do Nascimento Machado possui graduação em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste, Campus de Irati. Atualmente é mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História, PPGH-UNICENTRO, sob a orientação do Dr. Oseias de Oliveira. E-mail: jefersondonascimentomachado@gmail.com

BRINQUEDOS E CACETADAS. Diário da Tarde. Curitiba, 1889. s/p. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=800074&PagFis=150&Pesq=Izidoro%20Mendes>. Acessado em 30 de abr. 2019.
CAPOEIRA. Diário da Tarde. Curitiba, 12 de set. de 1983. p. 4. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=800074&>. Acesso em 05 de mar. 2019.
CRÔNICA do Rio: Um mestre da vida. Diário do Paraná: Orgao dos Diários Associados (PR), Curitiba, 11 jan. 1958. Primeiro caderno, p. 2. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=761672&pesq=preto%20desid%C3%A9rio>. Acesso em: 24 dez. 2017.
KONDER, Marcos. A infância de Lauro Muller. O Estado do Paraná: Jornal da Manhã (PR), Curitiba, 09 dez. 1926. Edição 516, p. 6. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=830372&pesq=preto%20desid%C3%A9rio>. Acesso em: 24 dez. 2017.
KONDER, Marcos. Lauro Muller: Menino, adolescente, alumno. O Estado (SC), [S.l.], 13 maio 1934. Edição 618, p. 10. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=098027_03&pesq=preto%20desid%C3%A9rio>. Acesso em: 24 dez. 2017.
MACHADO, J. N. Esboço para uma história da capoeira paranaense. In: NUNES, Francivaldo Alves; GUIMARÃES, Athos Matheus da Silva [orgs.]. Simpósio Online de História dos Ananins: ensino, pesquisa, extensão. Ananindeua [PA]: Editora Cordovil E-books, 2019.
MUSSUNGA VOLTOU. O Dia. Curitiba, 15 de jul. 1951. p. 6. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=092932&pesq=Maior%20capoeira%20do%20paran%C3%A1 >. Acesso em 27 de jan. 2019.
NOTÍCIAS E FATOS. Diário da tarde. Curitiba, 17 de nov. 1900. p. 2. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=800074&PagFis=1906&>. Acessado em 25 de jan. 2019.
O SUCESSO DO PAGADOR. Diário do Paraná. Curitiba, 13 de dez. 1962. p. 2. Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=761672&pesq=roda%20de%20capoeira>. Acesso em 25 de jan. 2019.
OS GRANDES vultos do Partido Repúblicano: Retrato de um homem político. Paraná Norte, Londrina, 17 abr. 1948. Edição 863, p. 4. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=830240&pesq=preto%20desid%C3%A9rio>. Acesso em: 24 dez. 2017.
QUASE DEGOLADO AO QUERER AMAR. Diário do Paraná. Curitiba, 26 de ag. 1979. p. 11. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=761672&PagFis=105674& >. Acessado em 05 de fev. 2019.
SERGIPE, Mestre. O Poder da Capoeira. Curitiba: Imprensa oficial, 2006.

2 comentários:

  1. Olá Jeferson, vivemos em um país onde mesmo sendo boa parte da população com o padrão estético negro e africano ainda existem ideologias, desigualdades e estereótipos racistas, sendo a cultura afrobrasileira pouco divulgada e discutida em sala de aula. Em sua opinião, a capoeira nas escolas poderia contribuir para diminuir essa visão equivocada que ainda existe sobre essa cultura? Quais os benefícios dessa prática na formação social do aluno?

    Rodrigo Salmazo Mazzarão

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Boa noite, Rodrigo! Você levanta uma ótima questão. Eu acredito que a Capoeira pode ser um ótimo instrumento pedagógico, capaz de formar sujeitos mais ativos e interessados pela própria história. A Capoeira tem muitos elementos, várias facetas, que fazem dela uma prática cultura complexa, o que ajuda para trabalhos interdisciplinares. Dá para levar ela para a aula de Artes, de Educação Física, História etc. Então, sim, eu acredito que a Capoeira poderia contribuir para superar os estereótipos, formar sujeitos mais humanos e ser um instrumento pedagógico para ensinar outras coisas.

      Comentário: Jeferson do Nascimento Machado.

      Excluir