Maicon Douglas Santos Kossmann
O
vivo e o inanimado: as representações
1. Philippe Genty – Voyageurs
Immobiles, os humanos e o inanimado
Foto de Guto Muniz. Disponível em:
http://www.focoincena.com.br/voyageurs-immobiles/3895
D’ávila nos deixa a base das associações entre a matéria viva
e a inanimada, de uma forma que possamos compreender como essas se articulam e
como fazem para representarem e atuarem de forma harmoniosa de igual para
igual, o interessante na trajetória de Genty é que suas apresentações anteriores,
de bonecos e um universos repleto do inanimado, deram espaços aos humanos
participarem e não o oposto. Cito:
[...] O atraente coabita a cena com a matéria inerte, e
dentro desses estados performativos, o seu corpo fica sujeito a sofrer
modificações em sua aparência, estatuto e presença. Assim, há uma via de mão
dupla entre o atuante e os materiais inertes, pois, as ações de um refletem na
presença do outro. Eles se influenciam diretamente, em relações de
reciprocidade que fazem as suas realidades autônomas ora se confundirem ora se
completarem. (D’ÁVILA, 2018, p. 90)
Na peça, os materiais são variados, sacos plásticos, bonecos,
manequins, maquetes de cidades, rios representados com lonas, nuvens com
montanhas de plásticos etc. Destaco, o primeiro material que aparece o mais influente
na peça toda, o papel kraft, ele
configura forma e atua junto, preenchem senário e formam personagens, mas não
adquire vida própria, ainda é respeitado sua condição de papel, há várias cenas
em que aparecem os próprios atores manipulando o papel como marionetes, ou
ainda, modificando a natureza dos atores.
Genty deixa aberto para interpretações pessoais sendo esses
elementos o principal meio de comunicação entre espetáculo e público, o que
normalmente, é a voz, mas como D’ávila (2017, p. 119) nos elucida: “A voz é
aqui um elemento importante da dramaturgia, não como fala dramática, mas como
disparadora de paisagens sonoro-culturais diversas.”. Os atores falam em
diversas línguas, que respeitam a nacionalidade de origem de cada um deles,
francês, japonês, espanhol, inglês etc. Porém, a voz é muito pouco presente, e
geralmente não é um fator relevante de compreensão entre os personagens, ela
preenche a cena como referente a cena, gargalhadas que indicam um viés
ideológico, falas simultâneas em diversas línguas, mas que qualquer
nacionalidade compreende que é uma referência as frases decoradas e repetidas
em todo lugar do mundo de um atendente de supermercado ou ainda, sons
incompreensíveis que representam algumas das fazes do desenvolvimento humano.
Um último aspecto que
gostaria de abordar nessa etapa introdutória, seria a forma que é construída a
cena como um todo como D’ávila (2017, p. 114) diz: “Genty tenta transformar o
espaço da cena em um lugar onírico, onde o espectador pode ter experiências
pessoais ‘[...] o meio caminho entre o real e o imaginário’ (GENTY, 2013, p.
134).”. A obra referente conta com essa ausência de um material explícito do
sentido e construção da cena, deixando o publicar representar, utilizando esse
aspecto onírico na peça; acredito que o público invoque essas representações do
subconsciente, configurando, assim, o sonho, que por si, é uma representação
fantasiosa. Os sentimento ocorridos durante o sono são reais, porém, provido de
simbolismos, o sonho em si, para Freud são desejos que vêm a tona durante esse
momento íntimo, os simbolismos apresentados objetivam satisfazer esse desejo,
apresentados nas instâncias de: desejo, defesa e recalque; o pensamento onírico
é interpretado com a finalidade de visualizar esse pensamento, classificando
esses símbolos, em outras palavras, interpretar a subjetividade do pensamento,
e como falamos de uma teoria freudiana, o sonho na maioria das vezes, são os
impulsos sexuais, mas não devemos leva-los a exclusividade. (FREUD, 2017.).
2.Bebês Paraquedistas
"Voyageurs Immobiles". Espace Jacques
Prévert, théâtre d'Aulnay-sous-Bois. Fotos: ciclodrama. Disponível em: https://ciclodrama.wordpress.com/2010/11/15/voyageurs-immobiles-philippe-genty/
Genty talvez esteja
nos chamando para esse exercício de auto compreensão através de sua arte
hibrida, apresentando conceitos inovadores e que esperam uma resposta que exige
interação e representação do público com o próprio público, dos atores com os
atores e entre atores e entre espetáculo e público. Para quem for pesquisar
mais a fundo sobre a metodologia gentyniana, irá deparar com um fazer teatral
hibrido, que entrelaçam as criações dos atores com os desejos de direção
através de exercícios que buscam laços afetivos com o material presente na
peça. Enfim, para discorrer sobre a peça, selecionei dois assuntos que para mim
foram de maior relevância: os aspectos sexuais e culturais.
Sexualidade
A peça permeia por
excelência, de forma subjetiva, toda a constituição da sexualidade humana e
traz como critica e posicionamento algo totalmente anti-freudiano. Por vezes a
perversidade (ou será que são os impulsos latentes de nossa infância no
primeiro contato com uma cultura externa?) é demonstrada em momentos que um dos
personagens se atiram no mar, um tenta ajudar e os outros a proíbem; nos
desertos de papel kraft bebês surgem
de pés de couve, em barrancos de areia e no ventre de uma figura híbrida, esses
bebês são arremessados e explodidos na presença de uma “cidade grande”. Por
ordem de exibição, seleciono três cenas que achei pertinente para o debate
sobre a construção da sexualidade e posicionamento teórico da peça.
A primeira de 05:30min até
06:40min, quando surge uma Mulher com grandes seios cobertos de faixas, das
três fugiras masculinas ali presente, duas delas se encantam com a enorme
expressividade, a Mulher percebendo, pega a mão de um deles e acaricia-os
demonstrando prazer ao toque, que aos poucos a expressão de prazer se converte
em gargalhadas difamatórias, o homem que também excitado com a ação,
rapidamente expressa em pavor enquanto a Mulher retira algumas das faixas diminuindo
o tamanho, a ação se repete diminuindo ainda mais, até perderem o interesse.
Essa cena reflete no que Freud chamaria de “mulher histérica”, e citando Kiehl
(2008, p. 265) “[...] Feminilidade acaba sendo equivalente a histeria, e há uma
valorização da mulher histérica como aquela que sabe manejar a mascarada da
feminilidade e colocar-se na posição feminina frente ao homem.”. Interpretei de
uma forma, que logo no início na peça reflete a Mulher numa posição que possui
consciência, sabe seu lugar, sabe se impor, e fundamentalmente empodera.
3. Fragilidade do Homem
Captura própria 00:06:01
Numa segunda parte de
25:00min até 26:50min, quatro caixas com bebês, representando diferentes fases
do desenvolvimento, e destaco o que fica na parte superior direita, em que
este, brinca e exibe seu pênis para os demais, até a chegada de um quinto bebê,
(que é “uma”) ela olha para o pênis desse já citado, compara com a vagina dela,
fica intrigada, para de brincar, o menino incentiva ela a voltar a brincar, ela
brinca de novo com mais energia até que, arranca o pênis dele, enquanto o
menino grita de desespero, não por dor, mas por perder o único objeto que lhe
garantia visibilidade e poder, a Menina engole o pênis com tranquilidade. Nesse
caso, a primeiro momento, a Menina seria o objeto de desejo, que por fim não se
consolidou em tornar-se o objeto. E para trazermos o cerne da discussão, cito
Kiehl numa leitura crítica de Freud:
No caso das mulheres, a
sexuação se dá pela assumpção da diferença inscrita no corpo (até aí, tal como
nos homens), que as coloca de um lado da barra fálica – o lado dos sujeitos sem
pênis. Não há como recusar esta inscrição. Porém, para avançar deste ponto à
castração simbólica, as meninas, assim como os meninos, têm que passar pelo
pai. Primeiro, na percepção de sua função em relação ao desejo da mãe, o que
por si só já interdita o gozo materno
para a criança. Segundo, em consequência disto, pela constituição de um eu a partir de identificações com
atributos paternos, fundamentais para que ela possa se separar de mãe fálica e
percebe-la (portanto, perceber-se) como uma mulher. (KIEHL, 2008, p. 261)
4.
Eu tenho um pênis!
Captura própria 00:25:05
Lembrando que o
complexo de castração se deve a percepção consciente do menino da diferença
entre o sexo masculino e feminino, em que este, identifica que o pênis da
menina foi removido e forma-se uma angústia da figura paterna (pai) remover seu
pênis como punição por desejar a figura da mãe. Complexo de castração está lado
a lado com o complexo de Édipo. Se fosse dessa maneira, a figura da Mulher
seria montada de uma forma em ser mulher
só ganharia consistência de forma imaginária e fantasiosa por desejo de um falo
que através da sedução ou privação, na espera e uma figura que substituía o
desejo pelo pai que foi introduzido pelo discurso da mãe, em outras palavras,
dessa forma, ser mulher significaria saber ser desejada. Por essas que venho
dar destaque a cena que representa, no íntimo, o anti-freudismo, a Menina
engolindo o pênis com uma expressão tranquila, a menina representou uma
alternativa para o complexo de castração. Interpretei de várias maneiras
cabíveis, talvez algumas delas seja mais relevante para discussões, ou ainda,
criticar a seleção que fiz: a) poderia ser uma afirmação de igualdade de
maneira cômica, em que agora os dois são indivíduos sem pênis; b) uma afirmação
feminina que revela sua construção enquanto Mulher diferente de tudo que Freud
já escreveu; c) crítica a nossa sociedade estruturalmente machista e
falocêntrica. Dentre tudo, acredito veemente ser um posicionamento feminista muito
bem construído entre toda a companhia.
5.
Complexo de Castração
Captura Própria
00:26:46
Por último, uma cena
que ocorre de 34:40min até 35min. Um ator, homem, vestido de mulher, porém, sem
mais características físicas além das roupas, caminha enquanto cai de seu
ventre(?) bebês (bonecos, brinquedos). O ator representa uma figura hibrida
que, apesar de escolherem manter a aparência que entendemos como “masculina”,
atua espasmos e expressões de dor enquanto os bebês caem no chão, semelhante a
um parto de uma Mulher, mas estranhamente, em pé, igual animais que diferem dos
humanos. Nesse sentido cito:
Na área das ciências
sociais, em 1972, Ann Oakley escreveu Sexo, Gênero e Sociedade, primeira obra
neste campo científico a utilizar gênero como construção sociocultural que transcende
a diferença biológica entre homens e mulheres bem como
a binariedade masculino e feminino. (FERNANDES, 2019. Disponível em:
<http://sairdagrandenoite.com/identidade-de-genero-base-historica-introdutoria/>.)
6. Hibridização
Captura própria 00:34:40
A peça possui esse caráter reflexivo do espectador, o
propósito talvez seja de causar a estranheza e a confusão, uma forma para
podermos identificar nossas representações e que filtro ideológico classificamos
para isso, qual intencionalidade e impulso é ativado ao nos depararmos com uma
representação não binária da sociedade? Evidenciamos nessa etapa o corpo do
quem atua e como representa essa reflexão, precisa ser algo específico, como
revela D’ávila:
O corpo do atuante, dentro desse processo, pode sofrer uma
série de modificações em sua aparência, estatuto e presença: a diluição do seu
caráter de individualidade, a sua duplicação, a hibridização, o travestimento
do humano por manequins e formas variadas, a sua aparente essência de vida e
autonomia etc. Essa humanidade, perturbada pela inerte com sua transformação em
outra coisa, impregna estranheza toda a poética gentyniana. (D’ÁVILA, 2017, p.
117)
A
Metáfora Papel Kraft
O papel é como parte de outras pessoas, culturas,
representações e a cada contato, é amassado mais e mais, novos seres surgem,
seres de papel, emaranhados de cultura, são a síntese de diversos punhadinhos
de outros papéis que aos poucos ganham forma e identidade quando entram em
contato com humanos. O papel é a cultura, as vezes singela, carinhosa, outras,
temerosa e agressivas, mas independente da forma que se manifesta, precisa ser
domada e manipulada por seres humanos, a cultura é o que nos difere de qualquer
outro ser natural.
Às vezes, os humanos são
encobertos por esses papéis, que por fora parecem uma coisa, e vão se
desmontando conforme se transformam, mas aqueles pedaços deixados para trás
nunca se desvinculam, sempre retornam, as vezes mais amassados, as vezes
retinhos e brilhosos de tão novos, o papel preenche o cenário, formam um
deserto, dele, bebês são gerados e esses humanos cuidam com doçura ou provocam
travessura, mas nunca deixa de estar lá. Mas o que mais me chamou atenção, além
de toda essa parte de modificar o corpo, de privar a individualidade, de
participar das danças, de eternizar a silhueta humana de provocar a raça
humana, o papel, possui uma vontade, uma figura se ergue em meio a confusão de
outros seres munidos de papel, e no papel um rosto, um simulacro da vida
humana, um papel, que talvez, queria ser humano, queria ser vivo, mas embaixo
da pele, um papel, que embaixo do papel, um humano, não poderia o papel se
contentar em dar forma a vida humana? O papel quer ser humano por ele mesmo,
mas o humano não consegue ser humano por ele mesmo, é preciso o papel, é
preciso a cultura, se não, é vazio.
7. Vazio
Disponível
em: http://caroleallemand.com/portfolio-item/voyageurs-immobiles/#.XKXtaKRG1PY
Existe um outro ser inanimado, parecido com o papel, mas
provoca outros efeitos, o papel é reciclável, dilui rápido e mesmo que, às
vezes, tente de maneira trágica, representar algo que não é, é em suma,
respeitável a sua condição. Desse outro me refiro ao plástico, aparece diversas
vezes sufocando, sendo disputado, é útil para sublimar os impulsos agressivos
(?) ou apenas incentiva a agressividade (?). O plástico embala os bebês recém
gerados como um processo de linha de produção, passa por uma canhoneira, um
tubo, que é embalado e contabilizado numa caixa, dessa forma no sorriso de uma
Mulher que que expressa uma fala de uma atendente de supermercado. Existe uma
outra cena para o plástico, incrivelmente o “paraíso”, as nuvens são o plástico
em si, existe também uma linha de produção, um conferente que classifica as
almas que chegam lá com plásticos retirados da boca, embalam e mandam a vida
eterna, que sobem como produtos numa vida, aparentemente, deveria ser sem
propriedade privada que nem roupa possuem, mas a ambição e o desejo sexual
ainda existem, afinal, não foram como produtos do mercado que subiram? Apenas mudou
a riqueza.
Encerro o texto com o trecho mais metafórico que consigo
exprimir e com uma citação pertinente ao significado entre as representações de
imagem material e imagem imaterial e a forma como se articulam no ser. “Didier Plassard chama a atenção
para o fato de que, nas trocas sociais cotidianas, a diferença entre corpos e
simulacros não tem muita relevância.” (D’ÁVILA, 2017, p. 116).
8. Paraíso
Disponível em:
https://culturebox.francetvinfo.fr/scenes/voyageurs-immobiles-de-philippe-genty-poursuit-sa-tournee-69005
Referências
Maicon Douglas Santos Kossmann, Graduando em História,
Faculdade Porto-Alegrense - FAPA
Grupo Autônomo de Pesquisa – Sair da Grande noite
Sairdagrandenoite.com
DÁVILA, Flávia.
Humano em cena: reflexões
a partir da obra de Philippe Genty. Corpos
no Teatro de Formas Animadas, [s.i.], v. 17, n. 1, p.107-121,
Não é um mês valido! 2017. Disponível em:
<http://www.periodicos.udesc.br/index.php/moin/issue/view/1059652595034701172017/showToc>.
Acesso em: 03 abr. 2019.
D’ÁVILA, FlÁvia
Ruchdeschel. UM
TEATRO DE METAMORFOSES: PHILIPPE GENTY ENTREO HUMANO E O
INANIMADO. 2018. 275 f. Tese (Doutorado) - Curso de Artes, Universidade
Estadual Paulista JÚlio de Mesquita Filho Nstituto de Artes, São Paulo, 2018.
Disponível em:
<https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/154462/davila_fr_dr_ia.pdf>.
Acesso em: 03 abr. 2018.
FERNANDES, Carolina. Identidade de gênero: base
histórica-introdutória. Sair da Grande Noite. 2019. Disponível em: <http://sairdagrandenoite.com/identidade-de-genero-base-historica-introdutoria/>.
Acesso em: 03/04/2019
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. Porto
Alegre: L&PM, 2017.
KEHL, Maria Rita. Deslocamentos do Feminino. 2.
ed. Rio de Janeiro: Imago, 2008.
PHILIPPE Genty - Voyageurs
Immobiles 2010. Direção de Patrick Savey. [s.i.]: Zycopolis Productions, 2010.
Son., color. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=z4Iwo-oYdAg&fbclid=IwAR1NcNBSNw1DDocDzv7KB_JhBYbsfJoI6ebloF-GQtAHIV2u7kaGFqKHC6o>.
Acesso em: 03 abr. 2019.
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