Ricardo Hiroyuki Shibata
Um
dos maiores best-sellers do século XVIII na América Portuguesa foi o Tesouro de meninas, da Pauline de
Montmorin, condessa Leprince de Beaumont, traduzido para o portuguiês em 1774.
A importância e a vitalidade dessa obra de cunho didático-moralizante, cujo
público em potencial seria crianças em fase de letramento e jovens leitores, é
testemunhado pelos títulos de livros submetidos à censura lisboeta entre 1808 e
1826 com destinação ao Rio de Janeiro (ABREU, 2003, p.107s). Nessa lista de
obras mais encomendadas para veiculação em terras brasileiras, é fato curioso
perceber que, ao lado dessa obra (de aparente) matriz doutrinal, estão outras,
de cariz ficcional, que narram os feitos heroicos de Telêmaco, as peripécias do
picaresco Gil Blas, os contos das Arábias contados em mil e uma noites, os
feitos de Carlos Magno e seus doze pares de França, e, mais ainda, um correlato
de gênero, o Tesouro dos meninos.
Outro fato curioso é que a completar essa lista estão a obra poética de Manuel
Barbosa du Bocage, porém sem a causticidade de suas composições mais
desbocadas, e o insuspeitado pastoril Marília
de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga, réu confesso de Inconfidência e
amargando condenação no exílio.
É
bem certo que o Tesouro de meninas é
“poderosa fonte de conhecimento da história de uma nação” (LAJOLO e ZILBERMAN,
1998, p.121), em particular, quanto à ordenação do mundo da leitura no Brasil e
que, a partir disso, é perfeitamente possível mapear o circuito de produção e
difusão de obras impressas no interior de uma dada comunidade de leitores nos
alvores do Iluminismo e sua respectiva ambientação nos trópicos. É igualmente
certo que essa obra também consegue levantar pistas relevantes quanto à questão
da educação feminina, com detalhamento de seus processos institucionais ou
domésticos, respetivo programa pedagógico, sobretudo de um plano de conteúdo a
ser devidamente estudado, e princípios gerais de ordenamento (ALGRANTI, 2014;
ALGRANTI, 1998). Tratava-se de material oficial com chancela da monarquia e dos
poderes corporativos a ela associados, justamente aquilo que escapou as
prescrições, as interdições e os vários modos de atuar da censura
institucional, bem como os usos do livro impresso por parte dos leitores a
partir de estratégias hermenêuticas voltadas para os significados ilustrados, o
que significa a partir da heresia e da sedição (VILLALTA, 2015).
De
qualquer forma, o que se pode flagrar no interior dessa obra são normas ou
regras de comportamento social, como aqueles doutrinados em manuais de
civilidade que não difundiam um programa pedagógico específico, conquanto
possuíssem caráter didático, pois tratavam basicamente da etiqueta (a pequena
ética, como se diz) e da Ética propriamente dita (a educação moral e religiosa).
Ou seja, a ênfase era dada a partir de conselhos e admoestações de ordem
prudencial, conforme o gênero deliberativo.
Essa ordem do discurso é relevante, pois os enunciados performativos se
davam estrategicamente no interior dessa matriz sapiencial, o que demandava
necessariamente a sua correta expressão por um modo específico de dizer. Assim,
não se trata de uma “moralidade performativa” (BROWN, 2008, p.157s) stricto senso, em que os ditames para a
educação feminina se autonomizavam em relação a outros elementos do sistema
educacional. Aqui, também, vale esclarecer que a educação não era um campo
autônomo de conhecimento, mas se articulava a outras instâncias de domínio e de
disciplina.
Mesmo
porque havia uma variedade considerável de discursos que visavam à produção,
disseminação e afirmação dos valores sociais mais prestigiosos com o objetivo
de legitimar uma certa concepção de ordem e de hierarquia. É que o campo ético
se dinamiza a partir de outros campos, que lhe são complementares e dependentes
(o campo político, o campo das relações familiares, o campo espiritual);
lugares estratégicos, onde se formam e se cristalizam ideais e normas de
comportamento particulares (BETHENCOURT, 1988, p.251).
Mais
ainda, como se referem os estudos de Arno Mayer (1987), o Antigo regime não foi
sepultado, em definitivo, com a Revolução francesa de 1789. Após, um período de
turbulência e convulsão social, com a guilhotina decepando cabeças coroadas e
com o liberalismo sendo disseminado como moeda corrente, os regimes monárquicos
europeus, de caráter hereditário, buscaram, num primeiro momento, repostar com
mecanismos violentos de censura, repressão e violência, porém logo se adaptaram
à nova realidade, justamente para manter privilégios e a lógica hierárquica
tradicional. Ainda com Mayer, a “força da tradição” causava uma inércia social
que buscou ratificar os alicerces econômicos da antiga ordem. O velho regime
possuía uma excepcional “elasticidade”, cujo modo de atribuição de poder,
estabelecimento de convenções e de hábitos, se mantiveram estabilizados num
sistema cultural coerente e complexo, portanto com enorme capacidade de
resiliência e de sobrevivência. Nesse sentido, basta pensar, para o caso
brasileiro, que os grandes proprietários de terra e os negociantes de grande
escala receberam paulatinamente estatuto nobiliárquico por nomeação régia,
resultado imediato da transferência da Corte para o Rio de Janeiro.
A
estratégia de cooptação das elites locais foi um esforço consciente de
adaptação da monarquia lusitana à nova situação em que uma colônia se tornava
capital de Império. Esses grupos sociais, por sua vez, acabaram por incorporar,
com ênfase, a lealdade fundada em vínculos de matriz familiar, disseminação das
virtudes heroicas e prestação de serviço público ao Estado. Dito de outro modo,
eles conseguiram aplicar com sucesso a apropriação dos valores e insígnias
aristocráticos, conformando uma espécie de “biculturalismo”(BURKE, 2010,
p.30s). A interação entre as duas culturas se moveu estrategicamente em direção
à assimilação por parte da cultura local com sua face tropical à cultura
lusitana, europeia e cosmopolita.
Tudo
isso está correto em grande medida, porque conseguem destacar muito dos
conceitos civilizacionais que estão em jogo a partir do contexto histórico em
que estes textos estão imersos. Porém, é preciso ressaltar, desde já, a
textualidade desse período conforme sua dinamização num campo discursivo
particular, portanto com sua própria lógica de criação e disseminação de seus
enunciados, vale dizer, a recepção e a hermenêutica por parte do leitor se dava
necessariamente a partir de gêneros textuais e, nunca, somente como forma de
acesso a conteúdos. Dito de outro modo, os conselhos e admoestações se
normatizam conforme o gênero discursivo de matriz deliberativa, cujo fundamento
se dá pelo argumento exemplar – aquele em que as ações do presente levam em
conta casos semelhantes que ocorreram no passado.
De
modo complementar, a base para a deliberação, no momento presente, ocorre
seguindo a lógica dos valores sociais e morais de maior prestígio, e de um
conjunto de virtudes. No século XVIII, o objetivo é buscar a honra, o aumento
de si mesmo, a grandeza da família (de sua “casa”) e, por conseguinte, o ser
“republico” ou, como dizem os tratados oitocentistas de educação, a
“civilidade”. É preciso ressaltar igualmente que essa noção de “civilidade”,
sem dúvida alguma relevante para o correto entendimento das práticas letradas
desse período, deve ser considerado segundo um contexto histórico mais
verossímil para este momento em particular. Tratava-se do último âmbito
doutrinal que articulava e estabilizava as várias hierarquias sociais, pois,
como afirma, Blanchard:
“O
termo Civilidade é derivado de outro, que significa Cidade, assim, na primitiva
acepção, Civilidade, quer dizer maneira de viver dos habitantes de uma cidade
entre si. Com efeito, a Civilidade compreende todas as regras, segundo as quais
nós devemos conduzir na Sociedade”. (BLANCHARD, 1851, p. 158)
Assim,
no século XVIII, em Portugal, é possível flagrar, de maneira certamente
peremptória, o esforço, por parte das diversas instâncias da monarquia, de
conjugar certas práticas narrativas de caráter imaginativo e literário com
mecanismos de interiorização da disciplina de viés moral e doutrinal. De fato,
como advertia Luís Antonio Verney, um grande pedagogo do período:
“Os
romances, a que os Portugueses chamam novelas, são verdadeiras epopeias em
prosa, e devem ser feitos da mesma sorte. Contudo, acham-se poucos que mereçam
este título; pois os portugueses e espanhóis que se acham nada mais são que
histórias de amor mui inverossímeis. O Telémaco de Monsieur de Salignac é uma
epopeia das mais bem feitas e escritas que tem aparecido”. (VERNEY, 1746, v.1, p.172)
Nesse
sentido, o leitor coetâneo tinha a seu dispor uma enorme quantidade de
discursos normativos, de variada natureza, em que era perfeitamente possível
reconhecer, com bastante verossimilhança, um conjunto coeso de virtudes, modos
de comportamento e conselhos práticos (com as respectivas admoestações por não
as seguir a contento) para constituir e se aproximar do ideal de homem civil,
aristocrata e político. O ponto de aglutinação era dado pela mediania –
justamente aquilo que Aristóteles afirmava ser o equilíbrio sempre instável
entre dois vícios extremos –, em que concorria, no contexto epocal imediato da
normativa oitocentista, os cuidados com a aparência física (incluindo, os
tratos com o vestuário), a relação cordial e amistosa com os outros, a polidez
das ações e uma grande dose de devotamento e altruísmo.
Para
a mulher, entretanto, era notória a escassez desses tipos de discurso. Daí, a
importância de uma obra votada exclusivamente a elas, como o Tesouro de Meninas. O que surpreende, em
particular, é que conquanto o Renascimento do século XVI e mesmo certos
teóricos da filosofia política iluminista do século XVIII tenham se esforçado
por destacar a importância das mulheres na dinâmica social, a elas ainda era
atribuída preferencialmente o papel de mãe de família e, por conseguinte, a de
educar e transmitir conhecimentos uteis a seus filhos. A despeito disso, é
preciso reconhecer, desde logo, que, em vários momentos particularmente
estratégicos, a figura feminina está presente de modo decisivo nas rodas de
conversação em público e nas sofisticadas reuniões nos seletos salões
aristocráticos, nos cuidados com a higiene pessoal, na postura do corpo em
ambientes de socialização, nos diferentes tratos com a moda e no convívio
harmônico entre os membros do círculo familiar. O que era dado, em verdade, com
certa dose de cautela e as devidas ressalvas.
De
qualquer forma, tratava-se, então, de uma ambiguidade de base, mesmo porque, se
de um lado, o destaque ia para o papel de mãe de família e seu restrito
universo da casa, lastreado numa continuidade histórica em longa duração que se
pode remontar muito bem pelo menos à Idade Média; de outro, havia um esforço
(fragmentário e intermitente) de ratificação de sua função moduladora no
interior das regras de etiqueta e na constituição de uma sociabilidade menos
voltada para o controle de si e mais para a atuação no convívio com os outros.
Nesse
sentido, conquanto podemos flagrar o surgimento de um espaço maior quanto ao
papel das mulheres na sociedade e à educação feminina, o que revertia em
respectiva maior cobrança quanto ao seu efetivo exercício em suas diversas
funções (esposa, mãe, amiga...), havia de igual modo a queixa por parte de
muitos teóricos quanto à total ausência de virtudes ou mesmo mecanismos em que
elas poderiam cultivá-las e aprimorá-las. (CLANCY, 1982)
Ou
seja, como se refere Mónica Bolufer, a inferioridade atribuída ao gênero
feminino acaba por colidir de frente com o argumento de que a mulher é
fundamental no processo civilizatório e na estabilização dos diversos estratos
sociais. Dito de outro modo:
“De
forma creciente, se atribuíria a las mujeres una responsabilidad particular em la
construcción de una sociedad civilizada, con todas sus ambigüedades, lo que
llevaría, por una parte, a ensalzarsu papel mediador y, por otra, a culparlas
de forma especial por los ‘excesos’ de la civilización y la “corrupción”
associada al refinamento”. (BOLUFER, 2009, p.220).
A
civilidade, com uma rede densa e coercitiva de preceitos e de interdições, se
impôs em meios cada vez mais numerosos; por isso mesmo, ela perdeu seu valor de
distinção para as “pessoas mundanas” que se afastaram dela e que, rejeitando
seus formalismos opressivos, definiram outro código de comportamentos, mais
livre, qualificado de polidez. A Enciclopédia
considera que a civilidade foi inculcada à maioria e que se tornou uma norma
para as condutas populares. (CHARTIER, 2004, p.74-75)
A
todo esse contexto, articulava-se um outro, em que concorria a própria dinâmica
específica da casa dinástica portuguesa. Como se sabe, D. João VI era filho
secundogênito e ascendeu ao trono após o falecimento de seu irmão mais velho D.
José, que pela morte repentina não deixou descendência, e da derrocada de sua
mãe D. Maria, incapacitada por “uma afecção melancólica” que se degenerou em
“insânia” e “frenesim” (BEIRÃO, 1944, p.411-412). Sua sagração como rei de
Portugal acabou acontecendo em terras brasileiras, tempos depois da
transferência da corte para o Rio de Janeiro, o que se deu com vários lances
pitorescos. Alguns historiadores desse período reputam esse fato à ambição da
grande nobreza lisboeta em ascender aos cargos de primeiro escalão do Estado;
outros, às maquinações perversas de sua esposa Carlota Joaquina em
arrebatar-lhe o cetro real por meio da usurpação do governo; outros, ainda, à
sua índole pessoal, sempre mais interessada, quando jovem príncipe, em matéria
religiosa do que nas práticas administrativas do Reino.
De
qualquer forma, a construção da persona
ficta do rei (APOSTOLIDES, 1981, p.34-38) – a figura do governante, sua
personalidade política – se deveu em grande parte à tradição educativa da corte
portuguesa, particularmente visível na Dedução
cronológica e analítica, de José Seabra da Silva, porém mais correntemente
atribuída a Sebastião José Carvalho e Melo (Marquês de Pombal). A pedagogia
principesca contemplava, com doses bastante variáveis a depender do interesse
do pupilo, de devoção e das razões da Corte. Tratava-se de articular uma
educação religiosa, portanto, com ênfase nos aspectos espirituais e doutrinais
da ortodoxia católica, com matéria de caráter cívico e prudencial, isto é,
aquela parte dedicada aos assuntos mundanos e mais comezinhos, aos de vertente política e da governança do
Estado. Tudo isso entremanhado com lições de geometria (rudimentos da
matemática), música, geografia, línguas estrangeiras (em especial, a língua
francesa, que era considerada era a língua de cultura e da diplomacia do século
XVIII) e noções de direito e legislação.
Esses
aspectos educativos são mais visíveis em sua forma mentis particular em dois pontos culminantes das festas
públicas de representação da Coroa: a aclamação (o termo jurídico mais preciso
era “alçamento” e pode-se crer que nada mudara mesmo com a corte ambientada nos
trópicos) de D. João VI como rei e as núpcias entre D. Pedro, herdeiro do trono
português, e D. Leopoldina. Ambas ocorridas em terras brasileiras. A Gazeta do Rio de Janeiro, órgão oficial
de divulgação dos atos governativos da Coroa, concedia largo espaço à narração
desses acontecimentos de júbilo em que estava presente D. João, quer quando
ainda era regente e depois no papel de monarca soberano. A repercussão podia
ser ouvida com alegria e entusiasmo pela população, nas mais longínquas vilas e
cidades que, muito dispersas geograficamente, compunham o Brasil da época.
É
que as várias instâncias da vigilância policial – não apenas no sentido de
salvaguarda da proteção e salvaguarda física dos súditos, mas igualmente também
da integridade moral (a assim chamada “moralidade pública” – recaía sobre qualquer
desvio das normas. A esfera da polícia se fazia mais necessária numa atmosfera
de tensão política gerada pela invasão francesa, pela pressão inglesa e pelas
dificuldades inerentes à lógica da regência joanina. Também se fazia necessária
pela elevação da temperatura no espaço público como lugar de exposição de
opinião e debate de ideias, em especial, pelos jornais em língua portuguesa
publicados em Londres: o Correio
Braziliense, de Hipólito da Costa, e o Investigador
português em Londres, de José Liberato Freire de Carvalho. O perigo de
contágio em solo brasileiro dos ideais revolucionários ameaçava macular a
natureza paradisíaca do Brasil e convulsionar toda a sociedade, desarranjando
as hierarquias instituídas.
Por
fim, o que fica claro é que a disseminação do saber livresco, como o exemplo daquele
constituído pelo Tesouro de Meninas,
vinha preencher a intenção de constituir uma sociabilidade como dispositivo
disciplinador de atitudes, comportamentos e valores – uma nova urbanidade, em
que o processo civilizador – para usar uma expressão de Norbert Elias (1994) – destacava
feições inéditas. É aquela “violência doce” do poder, conforme se refere
António Manuel Hespanha (1984), com seus mecanismos de inculcação de normas de
respeitabilidade, atribuições de honra e controle social, ou seja, da
disseminação do “bom gosto” e das “boas maneiras” por meio da lei e da ordem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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autor é Doutor em Letras (Unicamp/Universidade Nova de Lisboa)
Pós-Doutor
em História da Cultura (UFPR)
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