Lucas de Mattos Moura Fernandes
Partindo
da análise da documentação consular produzida sobre imigrantes brasileiros
residentes no Marrocos nas últimas décadas do século XIX, este trabalho compõe
uma pesquisa voltada para a compreensão de quais elementos contribuíram para
que uma grande quantidade de marroquinos, formados em uma matriz cultural
judaica sefardita e regressos do Brasil, mesmo ao se reestabelecerem em sua
terra natal, se identificarem ainda como brasileiros. Buscamos este objetivo
por meio da análise de fontes documentais selecionadas, mantidas pelo Arquivo
Histórico do Itamaraty, que permitem um perfilamento dos indivíduos implicados
em demandas jurídicas e negociações comerciais, nas quais a cidadania
brasileira era evocada.
Alguns
judeus marroquinos que migraram para o Brasil ao longo do século XIX, ao
regressarem ao Marrocos, decidiram manter a cidadania brasileira como forma de
acesso a uma determinada segurança jurídica, tendo em vista a condição judaica
na sociedade marroquina e as vantagens do tratamento dispensado a estrangeiros,
após a interferência francesa de 1863 e o Tratado de Madri de 1880, que
regulamentara a condição de protegido por nação estrangeira enquanto residente
em território marroquino. Buscaremos
neste artigo reconstituir, a partir do estudo de caso envolvendo a querela
entre Abraham Eleazar e Mordokay Casez, as condições em que a as autoridades
consulares eram invocadas em favor de judeus marroquinos com naturalidade
estrangeira, em especial brasileira.
Perfil
demográfico da comunidade brasileira no Marrocos em 1900
Em 1900,
com o objetivo de reorganizar o Consulado brasileiro em Tânger (Marrocos), o
novo Cônsul Adoniram Maurity Calimerio decide recensear os cidadãos brasileiros
no país, como uma estratégia de identificação da comunidade local. Sob as
ordens do Cônsul Geral do Brasil no Marrocos, os Vice-Consulados realizaram um
recenseamento da comunidade brasileira naquele país norteafricano, de modo que
qualquer cidadão brasileiro em terras Marroquinas que se apresentasse ao posto
consular mais próximo de sua residência, munido de documentação oficial emitida
pelo governo brasileiro, fosse certidão de nascimento, de naturalização, título
de eleitor ou passaporte, seria submetido a uma inquirição para que se
registrasse os dados de sua família.
Desta
forma, os escritórios consulares em Tânger, Rabat, Marraquexe, Mogador, Tetuan,
Arzila, Casablanca, Mazagão, Larache e Alcácer acumularam durante o ano de
1900, informações sobre as principais famílias brasileiras que residiam no
país, e após esses dados serem reunidos pelo Consulado Geral em Tânger, o
Consul Geral Adonyram Maurity Calimério editou o “ Livro de Registro de Súditos
Brasileiros no Marrocos em 1901”, fonte a qual recorremos para iniciar uma
tipologia desta comunidade brasileira.
Devemos
evidenciar que este não foi o primeiro recenseamento de cidadãos executado
pelas autoridades consulares brasileiras no Marrocos. Em nossa pesquisa
encontramos relatos de pelo menos dois censos anteriores, realizados em 1880 e
1890 (AHI 265-1-10). Ainda assim, nossa pesquisa em nada é prejudicada, tendo
em vista que no censo de 1901, o funcionamento das instituições consulares
brasileiras no Marrocos estava em seu auge, devido não apenas às chegadas e
partidas de imigrantes entre o Marrocos e o Brasil, mas especialmente por conta
das demandas consulares por parte da comunidade local; assim como estavam em
evidência as características desta comunidade brasileira, que devem ser
ressaltadas para os fins histórico-sociológicos de nossa pesquisa.
Outro
elemento que cabe mencionar, é o contexto histórico local e internacional no qual o “Livro de Registro de Súditos
Brasileiros no Marrocos” foi produzido. O processo de recenseamento que deu
origem a este livro de registro dos cidadãos brasileiros no Marrocos não deve
ser entendido somente como uma elaboração de estatísticas de cidadania pelo
recém proclamado governo republicano. É
mais do que isso. Manter postos consulares num país como o Marrocos, nesta
conjuntura geopolítica, significava também garantir auxílio e proteção jurídica
à comunidade brasileira, que colocada numa condição especial de
internacionalidade, como “protegidos”, acionaria sempre que necessário o apoio
das instituições brasileiras ali representadas. Neste contexto qualquer país,
ocidental ou não, que mantinha postos consulares no Marrocos, tinha sua
soberania respeitada por qualquer motivo que envolvesse risco jurídico para o
interesse de um nacional ameaçado.
Por meio
deste censo realizado em 1900, somos informados a partir da fonte histórica em
análise que 110 cidadãos brasileiros se apresentaram aos Consulados locais
marroquinos apresentando carta de naturalização, 7 apresentaram-se com o título
de eleitor brasileiro e 24 registraram-se por meio de passaporte; totalizando
141 indivíduos, tidos como “chefes de família” (pais em um núcleo familiar
restrito, solteiros independentes financeiramente ou viúvas). Além desses
números, de forma curiosa, o relatório final emitido neste recenseamento, soma
aos 141 registrados, ainda 70 cidadãos brasileiros que não teriam se
registrado, mas que foram incluídos como brasileiros no recenseamento, mas que
estavam ausentes do Marrocos no momento do recolhimento dos dados. Não fica
claro por que motivo estes setenta indivíduos tenham sido incluídos no
quantitativo final de cidadãos brasileiros, mesmo sem ter correspondido à
convocação de recenseamento. Uma
explicação plausível talvez seja o reconhecimento pessoal, e relação próxima
entre a comunidade e o Consulado em questão.
Assim a
documentação que trabalhamos ao longo desta pesquisa relata uma série de
situações particulares nas quais o governo brasileiro, e de outras nações,
tendo seus cidadãos envolvidos, reclama apoio institucional para dirimir causas
jurídicas.
Por isso
ressaltamos que muito além de um debate sobre a natureza da nacionalidade e de
outras características destes cidadãos brasileiros no Marrocos, também devemos
entender que, há um contingente de membros juridicamente ativos da república
que se valem de uma interpretação tática do direito brasileiro e marroquino
para solucionar suas adversidades cotidianas.
Os
cidadãos brasileiros que se apresentavam aos Consulados locais para se
registrarem, não buscavam apenas o reconhecimento como brasileiros, mas especialmente
desejavam que com esse reconhecimento obtivessem os benefícios estabelecidos no
Tratado de Madri (1880), do qual tiravam proveito para obterem proteção do
governo brasileiro tendo em vista a situação geopolítica do Marrocos naquela
conjuntura norteafricana oitocentista.
A
consularização do cotidiano
Abraham
Eleazar era natural de Tânger, no Marrocos, mas assim como muitos de sua
geração, emigrou para o Brasil, numa viagem que, para muitos dos comerciantes
como ele, era uma oportunidade de negócios: capitalizar-se e retornar para um
investimento maior (AHI 265-1-11). Eleazar residiu em Teffé, distrito de
Manaus, onde em 27 de março de 1884 coseguiu obter a carta de naturalizado
brasileiro.
Somente
quatro anos depois de naturalizado foi que Abraham Eleazar reuniu condições de
retornar para sua cidade natal. Seu investimento foi justamente a compra de uma
casa, que seria reformada e daria lugar a um estabelecimento comercial. Dois ou
três meses depois, Eleazar abriu duas portas de seu estabelecimento para o
comercio, empregando dois pedreiros nas obras de adaptação do imóvel.
A rua
que Eleazar escolhera para adquirir seu imóvel era muito movimentada e como era
costume em endereços deste tipo, havia diante das portas das casas a presença
de tendas comerciais, nas quais comerciantes itinerantes marroquinos, tanto
judeus como muçulmanos, residiam provisoriamente enquanto ofereciam suas
mercadorias (265-1-11). Ao perceber que
o investimento de Abraham Eleazar logo se tornaria uma loja concorrente, um
desses comerciantes alojados em tendas, de nome Mordokay Casez, judeu protegido
da Itália, foi até o local da obra e
advertindo aos pedreiros que naquele local, em frente a sua tenda, não poderia
ser aberto uma porta, os persuadiu a parar o trabalho.
Poucos
dias depois, Casez decidiu acionar Abraham Eleazar na justiça, mantendo o
esforço para que o possível futuro concorrente não conseguisse abrir seu
negócio. Sendo os dois comerciantes, protegidos por nações estrangeiras, de
acordo com o Tratado de Madri (1880), deveriam ter sua querela resolvida nos
tribunais consulares, brasileiro ou italiano. Contudo, Casez apelou para o juiz
local Chraa, tribunal marroquino com atribuições pautadas nos costumes
religiosos, como afirma o então Cônsul brasileiro que acompanhou o caso
“O
protegido italiano Mordokay Casez foi mais esperto que o Sr. Eleazar, e por
isso reclamou que a questão fosse submetida ao Chraa, sendo fato que
este tribunal, consultado em matérias análogas, manda por via de regra fechar
portas e mormente janelas defronte de portas ou casas, tendo essa deliberação
por base o princípio fanático de que as mulheres mouras não podem ser vistas.”
(AHI 265-1-11)
A
sentença contrária à prosperidade do empreendimento de Abraham Eleazar, foi
emitida pelo tribunal quando ele estava fora da cidade e lidando com um
problema de saúde. Tal sentença exigia que o comerciante naturalizado
brasileiro fechasse suas portas. Como forma de recorrer do problema e tentar
salvar seu negócio, Eleazar enviou uma correspondência direta ao Ministro das
Relações Exteriores Brasileiro, Quintino Bocaiúva.
A
cobrança de resultados melhores no caso por parte de Quintino, enfurecera o
então Cônsul geral J.D. Colaço, em Tânger, que em resposta ao ministro afirmou
que o Sr. Eleazar foi “tão torpe como parte interessada” que nem sequer lhe
ocorreu ir até o Consulado brasileiro e explicar a situação, sendo inclusive
claro o fato de que estas portas estavam abertas para uma rua pública e que o
caso não devia chegar a tal ponto. Como demonstração de seu empenho, mesmo após
a emissão da sentença, Colaço investigou outras opções possíveis e descobriu a
propriedade de um outro protegido italiano que tinha as janelas abertas para
dentro do terreno do sítio de um muçulmano marroquino e recorrendo ao ministro
Mohammed Torres, para que se cumprisse a medida judicial para os dois casos, ou
para nenhum ( AHI 265-1-11).
O
litígio entre Eleazar e Casez, que iniciou-se pelo receio de um comerciante de
ver um possível concorrente ameaçar seu negócio e alcançou as mais altas
instâncias, envolvendo o Ministro das
Relações Exteriores Brasileiro e seu correlato marroquino, nos serve de exemplo
de como querelas cotidianas que antes das interferências europeias eram
decididas por tribunais locais e mesmo pela corte rabínica da comunidade
judaica, passaram a invocar autoridades superiores de outros países. A
saturação das correspondências oficiais das repartições brasileiras no Marrocos
de denúncias e discussões sobre situações de conflito, reflete a consequência
do Tratado de Madri que marcou a sociedade marroquina da época, como a
sociedade da consularização.
De
acordo com Mohammed Kenbib, o neologismo “consularizado” (m’qûnssô) que
se popularizou na última década do século XIX marroquino, era adjetivo
ambicionado por muitos nativos do país, sendo símbolo de “posses, poder, e de
arrogância” (KENBIB,2016,P.69). A ampliação dos grupos sociais participantes da
condição de protegidos, que por sua vez nada mais era que uma abertura dos
privilégios anteriormente inerentes ás funções consulares estrangeiras no
Marrocos para a sua respectiva colônia no país, contribuiu, aos olhos
marroquinos, para a dissolução da ordem e das instituições do Estado.
Entretanto, aos olhos do Itamaraty e de outras instituições que lidavam com
esses protegidos, o resultado foi a sobrecarga do sistema consular.
O ponto
é que os Consulados instalados no Marrocos, atendendo a demanda de seus
protegidos, passaram a dirimir situações em que a naturalidade ou condição de
protegido passou a ser mobilizada em situações vulgares, como relata J.D.
Colaço em reunião de Cônsules para resolver “atribuições municipais,” como os
problemas de abastecimento de água em Tânger, a constituição de um quebra-mar
em Casablanca e a ativação de um cais em Tânger (AHI 265-1-10). Até mesmo
problemas interpessoais de comunicação passaram a gerar trabalho para a
organização consular, como no caso de Isaac Bensimão:
“O Sr.
Isaac Bensimão, natural desta cidade de Tânger, naturalizado nesse Império
[brasileiro], por carta patente de 26 de junho de 1877, apresentou-se no
referido dia à tarde, desde logo com maneiras inconvenientes e tendo eu [J.D.
Colaço] sido informado, depois que se retirou, que se apresentara com desusada
altivez ao porteiro da Representação que não tinha obrigação de conhecer quem
era e desejou anunciá-lo antes de entrar [...] convidei o Sr. Isaac Bensimão a
comparecer perante mim com o objeto de [...] aclarar o incidente, assistindo
também o dito porteiro.
O Sr.
Isaac Bensimão nem sequer me deixou falar, e levantando a voz repentinamente
disse que não podia admitir diante dele o meu porteiro e que a mim mesmo não
tinha obrigação de respeitar [...](265-1-10).”
O comportamento impetuoso de Bensimão,
que adiante na narrativa continua a ofender a autoridade do próprio Cônsul,
resulta numa ordem de prisão e, que, como informa Colaço, estaria acompanhado
de sua filha de cinco anos. Ao permitir que Bensimão levasse sua filha para
casa e depois se entregasse para a autoridade policial, o naturalizado
brasileiro aproveita a ocasião para se evadir, dirigindo-se “à casa de um
hebreu súdito britânico, onde ficou, de sorte que, quando os soldados do bachá,
governador local, foram procurá-lo,” tiveram de aguardar na rua a ordem do
Cônsul inglês para que este fosse preso (AHI 265-1-10).
Apesar
do desagravo causado por Bensimão, sua fuga para a casa de um protegido inglês
demonstra que de forma astuta um naturalizado brasileiro encontrava a
possibilidade de jogar com as fraturas e incoerências do sistema de proteção e,
por meio de atitudes individuais avançar por entre os limites jurisdicionais
pautados na nacionalidade. Enquanto estava na casa do protegido inglês,
Bensimão não poderia ser punido pelo próprio Cônsul brasileiro.
Conclusão
Buscamos
demonstrar que a comunidade judaica em questão, ao mobilizar dentre seus
recursos possíveis a naturalização em um contexto de interferência
colonizadora, passa a ocupar o entre-lugar típico de um grupo social de posição
intersticial em uma sociedade marcada pela colonização, traduzindo a cidadania
brasileira em seus próprios termos, para uso em situações adversas, em que as
normas sociais por eles conhecidas, tanto brasileiras como marroquinas, eram
tensionadas em seu limite.
Por meio
do conceito de “consularização do cotidiano” pudemos analisar de que modos o
uso tático das brechas e fraturas no sistema jurídico, tanto marroquino quanto
brasileiro, expõe também as limitações e possibilidades dos cidadãos que
compõem o segmento social em apreciação e indicando uma contribuição mais ampla
aos estudos de cidadania e migração.
REFERÊNCIAS
Lucas de Mattos Moura Fernandes é Historiador e Professor de
História,Filosofia e Sociologia (SEEDUCRJ).Mestre em História Social pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também participa do Núcleo
Interdisciplinar de Estudos Árabes e Judaicos.
Documento AHI 265-1-10
Documento AHI 265-1-11
KENBIB, Mohammed. Juifs
et Musulmans au Maroc. Paris: Editions Tallandier, 2016
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