AS SÁTIRAS DE TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA: FERRAMENTAS PARA HISTÓRIA E LITERATURA


Leonardo Paiva Monte
Lilian Bento

A literatura barroca e a literatura arcádica apresentam vinculação com os elementos da cultura, destacando os seres humanos como um todo: sua história, suas crenças, seus usos e costumes, suas “visões de mundo”, suas linguagens, etc. No plano simbólico, a literatura colonial ressalta o elemento nativo, com o enfoque de áreas geográficas com seus habitantes, hoje vistas como o esteio da cultura da memória, cujas práticas “são culturalmente determinadas por redes discursivas que envolvem fatores de diferentes ordens – míticos, políticos [e outros]” (FERREIRA; ORRICO, 2002, p. 136).

Desse modo, objetivamos estabelecer um diálogo entre a Literatura e a História, utilizando as sátiras presentes em Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga. Trata-se de averiguar como este poeta documenta a mentalidade da época e como explicita os elementos constituintes de um povo ainda em formação, na explicitação de “visões de mundo”, ideologias, identidades, entre outras.

No que se refere às sátiras presentes no texto literário, que serão os elementos observados neste artigo, podemos afirmar que

“A sátira supõe uma consciência alerta, ora saudosista, ora revolucionária, e que não se compadece com as mazelas do presente. Mas como o seu ímpeto vem da agressividade, que é instinto de morte, o teor positivo, ‘tético’, dessa consciência, é, em geral, um termo de comparação difícil de precisar, porque implícito, remoto, embora ativo. Na sátira acham-se ocultos, às vezes ao próprio poeta, o sentido construtivo, a aliança com as forças vitais, em suma, a boa positividade, que nela se confunde com a negatividade” (BOSI, 1993, p. 163).

A Literatura na História

Tendo em vista que, desde que a “Escola dos Annales” promoveu uma renovação das técnicas e dos métodos da História, houve mudanças nos conceitos de fonte histórica, fazendo com que se ampliasse a noção de documento. Posto isto, a História deve ser feita “com tudo aquilo que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve ao homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem” (FEBVRE, 1949 apud KHOURY et al, 1989, p. 15).

Com isso, a Literatura se tornou um vasto campo de pesquisa para o conhecimento histórico, pois “a preservação da memória coletiva por um grupo, embora pequeno, é uma verdadeira tabua de salvação para a comunidade inteira” (PAZ, 1993, p. 80). Além disso, entre as várias funções que a Literatura exerce, destacam-se a da expansão da cultura e a de proporcionar um maior conhecimento de mundo, contribuindo com aqueles que o analisam criticamente.

A criticidade do investigador ao analisar uma obra literária deve basear-se no conhecimento de que:

“Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas que há para ler nela é a representação que ela comporta. Ou seja, a leitura da literatura pela história não se faz de maneira literal, e o que nela se resgata é a representação do mundo que comporta a forma narrativa” (PESAVENTO, 1998, p. 22).

A Literatura está em diálogo constante com a História e esta fornece matéria para o desenvolvimento de temas tratados pela Literatura. Salientamos o fato de que a Escola dos Annales tornou mais abrangentes as possibilidades de pesquisa, uma vez que a Literatura é um campo frutífero para a pesquisa histórica, e que também é possível estabelecer contato entre outras disciplinas, para que os textos possam ser abordados de diferentes formas e assim proporcionar maior aprofundamento e aproveitamento para os leitores que os avaliarem criticamente com um olhar interdisciplinar.

Literatura colonial

Antônio Candido (1985, p. 88) referindo-se à literatura brasileira colonial lembra que “não havia tradição orgânica própria, nem densidade espiritual do meio” e, posteriormente, lembra que estudar a literatura brasileira é fazer um estudo de literatura comparada, principalmente, em se tratando de autores daquela época (CANDIDO, 1993).

Não descartamos o fato de a Literatura Colonial, do Brasil, é detentora de “visões de mundo” e ideologias, que trazem à tona resquícios do imaginário individual e coletivo, permitindo aos leitores fazer uma viagem de “turismo literário” ao encontro do Brasil Colonial, nos colocando em contato com nossas raízes nacionais, permitindo-nos redescobrir nossas identidades e discutir as diversidades culturais.

Tomás Antônio Gonzaga pode ser compreendido como o mestre que, sendo português, submete ao racionalismo próprio da época uma visão de mundo que se manifesta sobreposta a interesses individuais, enquanto percepção de mundo circundante. Daí o seu posicionamento crítico nas Cartas Chilenas, o que visto com um olhar contemporâneo nos faz pensar que “para se discutir cidadania [...] penetra-se nas filigranas das relações de poder e as respostas obtidas podem questionar ou repor significações hegemônicas que as sustentam” (SAWAIA, 1999, p. 45), o que é comum, também, acontecer no plano simbólico, o que foi desenvolvido na percepção do mundo real por aqueles poetas que captaram o desenvolvimento do processo de exclusão em relação aos nativos.

Gonzaga, patrono da cadeira nº 37 da Academia Brasileira de Letras, nasceu em Portugal, em 1744, e faleceu na Ilha de Moçambique, em 1810. Durante a infância, passou alguns anos em Recife e na Bahia onde o pai servira na magistratura e, adolescente, regressou a Portugal com o intuito de completar os estudos, matriculando-se na Universidade de Coimbra na qual concluiu o curso de Direito.

A permanência em Vila Rica, Minas Gerais, se estendeu até 1789, quando foi envolvido na Inconfidência Mineira. Em maio do mesmo ano, acusado de cooperação na conspiração, é preso e enviado ao Rio de Janeiro.

Nessa ocasião, Gonzaga estava noivo de Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a quem dedicava poesias que comporiam parte do livro intitulado "Marília de Dirceu" cuja primeira parte foi lançada em Lisboa, pela Impressão Régia, no ano de 1792. Esta obra não fará parte de nosso estudo.

As Cartas Chilenas

Gonzaga tivera desavenças com as autoridades locais, o que motivou a escritura das Cartas Chilenas, em 1789, que ocorreram anônimas, sendo posteriormente restituída à paternidade a Gonzaga, antes atribuída a Cláudio Manuel da Costa.

“Nesse poema herói-cômico em decassílabos brancos, subdivididos em treze cartas e dirigido contra as prevaricações coloquiais do governador Luís da Cunha Meneses (o Fanfarrão Minésio), residiria à origem primeira das desventuras políticas de Gonzaga” (STEGAGNO-PICCHIO,1997, p. 158).

O poeta atraiu inimigos ao satirizá-los e colocar em questionamento seus procedimentos, fazendo vir à tona as perspectivas: econômica, política, mental, e mais a falta de conhecimento sobre as reais condições dos homens que estavam sendo espoliados. Nas Cartas Chilenas, Gonzaga defende um plano político em que “a história se mostraria como um processo de súbitos avanços, longos períodos de regressão e perdas definitivas” (KOTHE, 1997 p. 254).

“As Cartas chilenas, contemporâneas das reuniões que preparavam o levante dos magnatas de Minas Gerais, retratam o confronto de poderes entre o ouvidor-geral, representante de um Judiciário emasculado pelo centralismo autoritário do absolutismo monárquico, e o governador da capitania, símbolo tipificador de um Executivo ditatorial que se imiscui em todas as esferas” (PEREIRA et al, 1996, p. 772).

As desavenças com as autoridades locais fizeram que surgissem as sátiras em discussão. No trecho que se seguirá, Gonzaga, ao descrever seu personagem – o Fanfarrão Minésio, faz uma descrição sobre a fisionomia do nomeado então governador Cunha Meneses.

“Tem pesado semblante, a cor é baça,
O corpo de estatura um tanto esbelta,
feições compridas e olhadura feia,
Tem grossas sobrancelhas, testa curta, [...]”
(GONZAGA, 1957, p.35).

Este retrato físico mostra a grande habilidade na arte da caricatura de Gonzaga. Durante a descrição, que se encontra na Carta 1ª, os adjetivos só aparecem quando necessários, pois o poeta não se vale deles para o traço caricatural: este surge da sucessão encadeada dos detalhes. Os versos têm um movimento e um ritmo para criar uma precisão no encadeamento dos detalhes.

Eis por que o solo político foi propício, no plano histórico-social, a que o povo se insurgisse contra a metrópole e o próprio Gonzaga sofreu consequências no plano real das atitudes vivenciadas, no plano simbólico, principalmente no discurso satírico das Cartas Chilenas, em que colocava em exposição os desmandos do poder constituído. Ao denunciar injustiças e violências que o Fanfarrão executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio, como uma de suas primeiras medidas.

“Pretende Doroteu, o nosso chefe
Erguer uma cadeia majestosa,
que possa escurecer a velha fama
da torre de Babel e mais os grandes, [...]

Desiste louco chefe dessa empresa:
Um soberbo edifício, levantado
sobre os ossos de inocentes, construído [...]

E sabes Doroteu, que edifica [...]
Pois ouve, que eu te digo: um pobre chefe,
que na corte habitou em umas casas
em que já nem se abriam janelas”
(GONZAGA, 1957, p. 38-39).

No trecho abaixo, Gonzaga colocou em xeque a figura do chefe - Fanfarrão Minésio / Cunha Meneses - como pessoa não digna do posto que ocupava, pois, suas posses, no Reino, eram pequenas, por isso o interesse que o levou a assumir o cargo de governador. Meneses pretendia não só captar os impostos da coroa, mas buscar o próprio enriquecimento, não se importando de impor ao povo medidas perversas e de apreendê-los quando eles faltassem com o pagamento, infligindo aos colonos trabalhos forçados, bem como a figura do negro sendo aprisionado nos quilombos.

“Para haver de suprir o nosso chefe
das obras mediadas as despesas,
consome do senado rendimentos
e passa a maltratar ao triste povo
com estas nunca usadas violências:
quer cópia de forçados, que trabalhem
sem outro algum jornal mais que o sustento,
e manda a um bom cabo que lhe traga,
a quanto quilombolas se apanharem [...]”
(GONZAGA, 1957, p.39).

Tomás Antônio Gonzaga descreve, sobretudo em sua obra, o sofrimento do povo, durante a administração de Cunha Meneses (1783-1788), na grande perspectiva histórica para a cultura de tal período, reforçou o assombro ante à visualização que o autor realiza sobre as condições de vida que a maior parte da população de Vila Rica encontrava-se em tal período. A província das Minas Gerais, especialmente Vila Rica, foi responsável, durante o ciclo do ouro, por sustentar muitos gastos do Reino ao ponto de naquele período posterior se ver quase esgotado. O povo agora estava entregue nas mãos de um tirano, que blasfemava contra as próprias leis da Coroa.

O projeto de sociedade trabalhado por Gonzaga, era de cunho estabelecido sobre as mudanças do período, especificamente o cultural e social. O cidadão, portanto, teria que ser mais bem tratado, dado que as ironias poderiam acarretar grandes problemáticas, como no seguinte trecho:

“Aqui os europeus se divertiam
em andarem a caça dos gentios,
como a caça as feras, pelos matos.
Havia tal que dava aos seus cachorros
por diário sustento, humana carne
querendo desculpar tão grave culpa
com dizer que os gentios, bem que tinham
a nossa similhança enquanto aos corpos,
não eram como nós enquanto às almas.
Que muito, pois, que Deus levante o braço
e puna os descendentes de uns tiranos
que, sem razão alguma e por capricho,
espalharam na terra tanto sangue”
(GONZAGA, 1957, Carta 10ª, versos 307 a 319)

O poeta foi nos livros de História declarado como inconfidente, por isso teria sido feito prisioneiro (MAXWELL, 2001). Quando foi sufocada a revolta de Vila Rica, contra as espoliações governamentais, foi degradado para Moçambique. Todavia, se tem como certo que a grande especificidade de sua vida ficou marcada por suas obras, o fazendo se encaixar como um dos mais ilustres árcades e criador de uma obra testemunho, pois deixou satirizado com as Cartas Chilenas os dramas de um povo, decorrente dos altos impostos cobrados por um governador tirano em benefícios de uma coroa omissa.

Os trechos estudados se manifestam como documentos de uma época e mais que um plano literário faz sobressair um teor histórico. E assim nos foi possível ver a poética colonial da fase barroca e arcádica como um documento de época.

A partir deste tipo de análise, podemos estabelecer um diálogo da Literatura com a História, porque esta favorece o seu desenvolvimento em temas tratados pela Literatura. Por isto achamos por bem traçar uma perspectiva que possibilitasse o trânsito deste entendimento da Literatura Colonial brasileira, com as marcas históricas que serviram de sustentáculo para sua efetivação.

As Cartas Chilenas se manifestam como documentos de uma época e juntamente com um plano literário faz sobressair, também, um teor histórico e por entender que a partir da análise de textos literários poderemos estabelecer um diálogo desta com a História. São sem dúvida sátiras, pois de seus embates com o presente em que são produzidas tiram uma “crítica lúcida ou desesperada de toda existência” (BOSI, 1993, p. 163). Contudo, elas também são representações documentais, portanto um patrimônio para a sociedade brasileira. Devem ser sumariamente discutidas como uma rede de problemáticas que afligiam o brasileiro daquela época e como a sua cultura era estabelecida, ficando, também, esclarecido que Gonzaga, como arcádico, exaltava o povo e a natureza, buscando, sobretudo, alertar a população de que sofriam desmandos e que não necessitavam aceitar imposições de despóticos e corrupções provocadas por seus governantes. As Cartas Chilenas representam, em forma de poesia, o contexto cultural de uma sociedade que se estruturava em pleno século XVIII e por isso demonstra ser uma fonte expressiva para estudos culturais.

Referências

Leonardo Paiva Monte é licenciado em História (UEPB) e mestre em História Social (USP).

Lilian Bento é licenciada em História (UEPB), mestra e doutoranda em Ciências da Educação (UNIDA).

BOSI, A. O ser e o tempo da poesia. 4. ed. São Paulo: Cultrix, 1993.

CANDIDO, A. Literatura e sociedade. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985.

CANDIDO, A. Recortes. São Paulo: Companhia das letras, 1993.

KHOURY, Y. et al. A pesquisa em história. São Paulo: Ática, 1989.

FERREIRA, L. M. A.; ORRICO, E. G. D. (orgs). Linguagem identidade e memória social: novas fronteiras, novas articulações. Rio de Janeiro: PP&A, 2002.

GONZAGA, T. A. Cartas chilenas. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957.

KOTHE, F. R. Cânone colonial. Brasilia: Editora UnB, 1997.

MAXWELL, K. A devassa da devassa. A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal 1750-1808. Tradução de João Maia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

PAZ, O. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993.

PEREIRA, P. et al. (Org.). A poesia dos Inconfidentes. Poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar S.A., 1996.

PESAVENTO, S. J. Fronteiras da ficção: diálogos da história com a literatura. Anais do XX Simpósio da Associação Nacional de História, Florianópolis, v II, julho/1999.

SAWAIA, B. B. Identidade – uma ideologia separatista? In: FERREIRA, L.M.A.; ORRICO, E. G. D. (orgs.). As artimanhas da exclusão. Petrópolis: Vozes, 1999.

STEGAGNO-PICCHIO, L. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

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