VANESSA DE ARAÚJO ANDRADE
A formação do povo brasileiro, seja em
seus aspectos sociais ou culturais, origina-se da multiplicidade étnica
encontrada no país, originalmente habitado pelo nativos indígenas, em seguida
pelos europeus colonizadores, e posteriormente pelos africanos trazidos para o
país pela escravização. Compreender e estudar esta multiplicidade é um dos
caminhos para garantir respeito à diversidade étnica, cultural e social do
país, e o ensino de história é determinante para o atingimento deste respeito.
O objetivo desta comunicação é
discutir a relevância do ensino de história e cultura afro-brasileira através
de ações educacionais voltadas para o público mais amplo que apenas o escolar. Para
tal, usaremos o Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos, ambos elementos
físicos da diáspora africana e da memória da escravidão no Rio de Janeiro, como
exemplos de objetos para trabalhar a questão da cultura e presença
afro-brasileira, pensando mais particularmente na ações educacionais
empreendidas pelo Instituto dos Pretos Novos.
Falar da importância que os africanos
escravizados e os indígenas tiveram na formação do povo e da cultura
brasileiros é de tal forma importante que existe um artigo constitucional que protege
as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras e de
outros grupos “participantes do processo civilizatório nacional” (art. 215),
trazendo um reconhecimento da relevância da contribuição destes povos para
nossa formação cultural. Posteriormente, a legislação atua também no ensino
escolar, para que haja maior conhecimento do assunto e para que a memória
destes grupos étnicos não seja silenciada, através da promulgação da lei
10.639/2003, que tornava obrigatório o ensino de história africana e
afro-brasileira, complementada pela lei 11645/2008, que acrescenta também o
ensino de história indígena De acordo com as referidas leis, a educação deve
abordar “diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir de dois grupos étnicos, tais como o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação
da sociedade nacional”.
A partir da entrada da lei em vigor,
mudaram alguns parâmetros tanto na formação de alunos como na de professores,
tais como a inclusão curricular de disciplinas que preparassem o educador para
sua abordagem no ambiente educacional. Havia até então uma grande lacuna no
conhecimento dos educadores quanto à história da África. Esta, até então, se
limitava à civilização egípcia – muitas vezes sequer referenciada como africana
– e posterimente, quando do início do tráfico escravista, como fornecedora de
“carga humana” para os navios negreiros. O africano surgia na história apenas
como escravizado, e era como se sua relevância se esvaísse nas abordagens
historiográficas do pós-abolição.
Com o centenário da abolição em 1988
houve um aumento dos estudos sobre a temática da escravidão e do pós abolição,
e ficou evidente a necessidade de maiores discussões acerca do tema, mas ainda
seriam necessários mais de 20 anos para que houvesse reflexos legislativos, resultando
nas referidas leis e na inclusão de disciplinas específicas nos cursos de
História. Esta mudança na formação dos educadores se refletiria na dinâmica do
ambiente escolar e nas discussões no
meio acadêmico com a inserção de temas relativos à escravidão e ao pós
abolição.
Mesmo com a legislação de
obrigatoriedade do ensino, ainda permanece uma lacuna nos estudos sobre dos
povos formadores da cultura brasileira aos que tiveram sua formação anterior à
promulgação da lei. Existem várias discussões acadêmicas sobre a questão da
importância da cultura negra na sociedade brasileira, mas ainda falta um longo
caminho para que isso se reflita adequadamente nos livros didáticos. Para
muitas pessoas do público leigo ainda permanece a visão dos índios como “indolentes”
ou vítimas de morticínio e os africanos apenas
como escravizados. Não são publicizadas suas revoltas ou estratégias de
resistência, e no pós abolição é como se eles “sumissem” da história. É
necessário discutir e estudar a participação destas pessoas no cotidiano e na
cultura brasileira.
O Cais do Valongo, considerado o local
de desembarque e comercialização de cerca de um quarto dos africanos
escravizados no continente americano, localiza-se na região Portuária do Rio de
Janeiro, e foi escavado em 2011 nas obras de renovação urbana para os eventos
esportivos Copa e Olimpíadas. A região
do Valongo concentrou o comércio de africanos escravizados do fim do século
XVIII até 1831, quando da proibição do tráfico negreiro. Na década de 1840, o
local foi reformado e antigo mercado de escravizados foi transformado numa
praça pelo arquiteto Grandjean de Montigny, da missão artística francesa, e por
ali desembarcou em 1843 a
imperatriz Tereza Cristina, momento em que o cais foi rebatizado como Cais da
Imperatriz. Durante as reformas urbanas do início do século XX, levadas a cabo
por Rodrigues Alves e Pereira Passos, o cais foi aterrado – num processo de
“modernização” da cidade que culminou em um silenciamento da memória da
escravidão e do período imperial. Já na contemporaneidade, havia conhecimento
do local do cais mas não havia interesse no resgate desta memória, mesmo após
proposições de historiadores e ativistas do movimento negro a partir da década
de 1980. Com as obras de reforma da região portuária a partir de 2009 e a
escavação do sítio arqueológico, houve um fortalecimento das reivindicações por
sua manutenção, e em 2017 o Cais foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio
Cultural da Humanidade e determinado como sítio sensível, ou seja, que evoca a memória
de crimes contra a humanidade. Para efeito de comparação, outros dois lugares
considerados como sítios sensíveis pela Unesco são o campo de concentração
nazista Auschwitz, na Polonia, e a cidade de Hiroshima, vítima de uma bomba
atômica na Segunda Guerra Mundial.
O Cemitério dos Pretos Novos funcionou
de 1769 a
1830, para resolver a superlotação do cemitério de Santa Rita, e abrigava os
corpos dos escravizados que morriam durante a travessia atlântica ou logo após
sua chegada ao Brasil. Uma vez que o mercado havia sido transferido para a
região do Valongo, era mais sensato manter um cemitério nas proximidades. Através
de pesquisas realizadas nos registros de óbitos da Santa Casa, concluiu-se que
foram enterradas ali milhares pessoas, mais de 6 mil apenas entre 1824 e 1830,
em condições de bastante precariedade. Foi descoberto por acaso, quando a
família que adquiriu três casas na rua Pedro Ernesto foi fazer uma reforma e
começou a se deparar com ossadas humanas em 1996. Lutando por auxilio governamental
sem sucesso, em 2005 criaram o IPN – Instituto dos Pretos Novos, que se dedica
a preservar a memória da escravidão e do tráfico negreiro, e desde 2015 promove
uma série de ações educacionais voltadas ao grande publico, com o intuito tanto
de prover a subsistência do Instituto, atualmente sem nenhuma forma de
patrocínio governamental, quanto de popularizar a importância cultural e
histórica daquela área e dos africanos escravizados que por ali passaram. A
história da utilização do local como cemitério, de sua redescoberta e da
fundação do Instituto encontra-se no livro À Flor da Terra, do historiador
Júlio Cesar Pereira.
Com a elevação do Cais do Valongo a
patrimônio cultural da Humanidade em 2017, houve um aumento da visibilidade
tanto do Cais quanto do Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança
Africana por parte da mídia, conjugado a ações educacionais para fomentar o
conhecimento sobre esta parte da nossa história. O Circuito foi criado em 2011
pela Prefeitura, e o próprio consórcio Porto Maravilha, que coordenava as obras
da região portuária, tinha um projeto de visitas guiadas ao Circuito, bem como
o projeto Porto Cultural que previa a aplicação dos recursos arrecadados para
as reformas em projetos que resgatassem a diversidade cultural da área (que
estão paralisados, uma vez que há uma grande discussão em torno do repasse dos
recursos de investimento das obras portuárias, impactando até mesmo em serviços
básicos como iluminação e saneamento públicos).
Gostaria de destacar aqui, como
possibilidades do ensino de história atreladas à Lei 11645-2008, as iniciativas
educacionais do IPN, que trabalha em parceria com historiadores, antropólogos,
arqueólogos e museólogos, não só para preservação do acervo mas também para
difusão do saber ali pesquisado. E para tal, empreende uma série de ações
educacionais, que vão de oficinas livres a dois cursos de pós-graduação. Uma
das suas principais atividades é a visita guiada ao Circuito da Herança
Africana, aula a céu aberto realizada no mínimo uma vez por mês desde 2012, e
que percorre os principais pontos da zona portuária ligados à escravidão, como
o Cais do Valongo, o Largo de São Francisco da Prainha, a Pedra do Sal e por
fim o próprio Instituto dos Pretos Novos. Esta visita é realizada tanto com
grupos de alunos em idade escolar quanto com o público geral interessado,
trazendo uma conexão entre o passado escravista, a vivência destas pessoas escravizadas
durante o período de cativeiro e no pós abolição, e o cotidiano urbano do Rio.
Além deste circuito, destacamos outras
ações que o IPN vem realizando desde 2015, e que vão ao encontro do objetivo
proposto pela Lei 11.645, de discutir a relevância da diáspora africana na
composição étnica, cultural e da personalidade brasileira, que obedecem a uma
temática de introdução ou ampliação do conhecimento sobre a cultura e a
história negras, baseada essencialmente na ligação da região portuária com a
escravidão, e de forma transversal por outros aspectos culturais, como a
cosmogonia ou os contos de tradição oral, que permeiam a cultura e a religião
de matriz africana em nossos dias.
Consideramos as ações e a própria
iniciativa do IPN como dignos de nota, não só pela sua relevância pela
perspectiva histórica, mas também por tratarem com respeito a cultura
diaspórica. As culturas de diáspora são, via de regra, guiadas pela necessidade
de reinvenção da identidade e da vida através dos laços que são formados no
ambiente de destino. A diáspora pode representar ligação, neste sentido, mas
também isolamento, a partir do momento em que os povos diaspóricos são
segregados ou discriminados. E, conforme mostra a história do Brasil, foi
exatamente o que aconteceu com os africanos escravizados, forçosamente trazidos
ao Brasil. Sua exclusão e marginalização perdurou ao longo da história, tendo
reflexos na contemporaneidade, no entanto é inquestionável sua participação na
formação da identidade e da cultura brasileira.
O ponto que gostaríamos de ressaltar consoante
a estas ações educacionais é seu atingimento de uma parcela maior de pessoas do
que apenas alunos de instituições escolares. O público participante dessas
ações era composto de professores, historiadores, ativistas de movimento negro,
e de inúmeras pessoas interessadas em urbanismo e em história do Rio de
Janeiro, que através das atividades teriam a oportunidade de ampliar seu
conhecimento acerca da história do Rio e de sua população negra, como também
estabelecer conexões sobre sua importância na nossa cultura e população atuais.
Atualmente
o educador em história enfrenta diversos desafios, da própria estrutura
educacional a discussões acerca de sua autonomia em sala de aula, e dentre as
estratégias de atuação, os espaços educacionais não convencionais podem ser uma
saída para uma discussão mais ampla e com geração de um saber significativo,
ancorado em vivências e percepções dos aprendizes com relação à sua vivência
cotidiana. Consideramos, portanto, que iniciativas externas ao ambiente
escolar, como de museus, centros culturais ou institutos como o IPN podem ser
vistas como uma alternativa de resposta e auxílio às questões colocadas perante
o educador, concernentes às revisões curriculares e novas dinâmicas escolares,
uma vez que proporcionam uma conexão entre a realidade cotidiana do aluno e uma
perspectiva global de inserção da cidade e do país na dinâmica da história da
escravidão e da resistência.
Referências Bibliográficas:
A autora é licenciada em História e
especialista em História e Cultura no Brasil - Unesa
Mestranda em História, Política e Bens
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Profª Orientadora Ynaê Lopes dos
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