Ricardo Hiroyuki Shibata
D.
Leonor de Almeida Portugal, a Marquesa de Alorna (1750-1839), é uma daquelas
raríssimas mulheres escritoras que mereceram a atenção e o interesse dos
historiadores da Literatura e da crítica contemporânea. Ela foi “mecenas” dos
salões aristocráticos na Arcádia Lusitana; embaixatriz em Viena e Londres;
predileta da rainha Carlota Joaquina; defensora das Luzes; e, sobretudo, defensora
de um papel mais ativo da mulher (ANASTÁCIO, 2007).
É
neste último aspecto que flagramos a sua obra “Cartas a uma filha que vai
casar”, endereçada D. Leonor Benedita, sua filha primogênita, que iria casar
com o Marquês da Fronteira, D. João de Mascarenhas Barreto, a 10 de novembro de
1799. Essa obra se enquadra no gênero “espelho de casadas”, cujo teor refere-se
à educação de uma jovem da nobreza e às suas respectivas responsabilidades no
interior da família e da casa. São seis cartas, que desvelam um número
considerável de atribuições, tarefas e atividades, que cabem à esposa
desempenhar no espaço do lar e nos espaços públicos.
I.
A
primeira carta se abre com os esclarecimentos, advertências e conselhos sobre o
novo papel que a jovem deverá desempenhar na sociedade. O que permite enquadrar
a argumentação da mãe segundo os parâmetros de determinado um ethos aristocrático e a partir de uma
voz racional e experiente, cuja autoridade é constituída pelos laços afetivos
que unem mãe e filha e pelos ensinamentos que se darão em forma de um código de
comportamento e modos de agir específicos. (CIDADE, 1941, p.75)
Não
se trata de educação, no sentido restrito de uma série de conteúdos que visem a
uma mudança de saberes, valores morais ou mesmo práticas sociais, porém, de
reforço quanto às virtudes que a filha constituiu ao longo do tempo e que,
neste momento de mudança de “estado” – a de “donzela” para “mãe de família” –,
devem ser justamente ratificados. Esse caráter de mera “lembrança” permite que
os enunciados sejam formulados em caráter didático, em estilo simples, direto e
objetivo.
É
que todos os cuidados e a formação que a filha recebeu desde a tenra infância
encontrarão, agora, a sua devida retribuição e consecução: sua saída do
ambiente materno, em que se exercia um papel subalterno, para a constituição de
sua própria casa, cuja administração e aumento dependerá de seu legítimo
protagonismo. É possível então entender que o universo feminino se completa com
o desempenho de seu papel no interior de sua própria família, com marido,
filhos e agregados.
Dessa
forma, ao sair do âmbito da casa familiar, cuja proteção e vigilância são a
salvaguarda da mãe e seus prepostos de confiança, a filha haverá de enfrentar o
desafio de constituir a própria casa e, de forma correlata, todo um novo
círculo social, que se governa por uma dinâmica particular.
Alorna
adverte primeiramente que o sucesso da filha depende de não se passar por uma
mulher “elegante, distraída e bela”, para angariar estima e prestígio. Esse
seria o caminho para uma vida miserável e infeliz. O cuidado com a aparência
exterior (esse “dom da natureza”, esse “tesouro hereditário”) é virtude, certamente,
pois é um aspecto relevante da saúde física, da integridade corporal e da
apresentação social de si mesmo, porém seu excesso conduziria a desvios morais
e à falsa vida (a “vida languida”), cujo termo é o “desprezo”, “esquecimento” e
a “indiferença” dos outros.
A
segunda carta inicia justamente explicitando o conceito de economia (“governo
da casa”). Segundo Alorna, a base da doutrina econômica são as regras e os
modos corretos de dispender os recursos financeiros com prudência e
racionalidade, sem avareza ou excesso de apego aos bens materiais, mesmo
porque, se fosse isso, teria o mesmo sentido da mulher que só preocupa com a
beleza física. De fato, gastar pouco ou nunca repartir com quem mais precisa
são as práticas preferidas do “mesquinho” e do “miserável”.
“O
verdadeiro econômico é aquele que pelos meios mais fáceis, mais simples, se
procura o maior número de satisfações; que, sem abuso dos seus cabedais, faz
reinar a abundância na sua casa, e que, à força de ordem, pode, do excedente
das suas próprias precisões acudir às alheias, e sacrificar à beneficência
somos capazes de tirar os outros da miséria”. (Apud CIDADE, 1941, p.79)
Importante
destacar que o dispêndio dos recursos e das posses da família por parte da
mulher casada não se restringe ao âmbito dos bens materiais, pois o tempo dedicado
às ações quotidianas deve seguir a mesma lógica e racionalidade dos cuidados
com o dinheiro. Vale dizer, a boa gestão do tempo deve enfatizar as “obras de
misericórdia” que, segundo a Marquesa de Alorna, constituem-se em prioridade
nos momentos de ócio da mulher casada. É este dever que é o passatempo por
excelência da mulher de família, porque refere-se ao seu “caráter de cristã”.
Aquela que vive apenas em favor de si mesma e cuidando exclusivamente de seus
próprios interesses não merece o privilégio de viver em sociedade; deve, isso
sim, “solicitar uma caverna, onde, à maneira dos tigres, seus semelhantes,
fosse fartar-se de egoísmo e barbaridade” (CIDADE, 1941, p.80).
Posto
isto, a vida de casada é a entrada em outros domínios, cujas demandas
extrapolam os exíguos deveres da mulher solteira. Para tanto, Alorna aconselha
que se durma sete horas por noite (o suficiente para recuperar o corpo e
conservar a saúde) e que se levante sempre bem cedo. O dia então deve se iniciar
com uma prece curta, fervorosa e humilde; e, após isso, breves cuidados com a toilette; das 7 às 8 da manhã, dedicação
à leitura e ao estudo para cultivar o espírito; das 8 às 9, café da manhã em
família e arranjos domésticos; das 9 às 10, estudo e aprimoramento das
qualidades artísticas; das 10 ao meio dia, cuidado com os filhos; do meio dia
até o jantar, ela deve estar preparada (devidamente vestida e adornada) para as
suas próprias demandas, as do marido e dos agregados. Esse último período é
também aquele reservado para se dedicar à costura, aos bordados e à música.
Alorna
adverte do perigo da “ociosidade”, sobretudo às tardes, que é período dedicado
aos “outros”. Trata-se do momento em que mais se recebe visitas e se é alvo de
“obséquios” e “galanterias”. Aqui, a mulher casada deve observar as “leis da
civilidade” e as regras de convivência, resguardando-se sempre de críticas e da
maledicência alheia. Se o convívio social é necessário, é preciso se valer de
“juízo claro” e de “constante modéstia”, com boas doses de discernimento e
polidez, para transformar um tempo considerado inútil em proveitosa paz e
prosperidade. A agenda feminina termina à meia noite, depois disso arruína-se a
saúde e se desarranjam as ocupações do dia seguinte. Além disso, criam-se
demandas aos criados que causam incômodo e trazem pouco benefício para a dona
da casa. A eles, deve-se determinar as obrigações e tarefas, regulando as horas
de serviço e descanso.
Se
essa segunda carta se dedica à questão do tempo, na terceira carta será
desvelada a economia de espaço. Temos uma longa explicitação de uma das
responsabilidades da esposa, qual seja: cuidar do espaço físico da moradia.
Aquela “ordem” e aquele “método”, que haviam sido propostos, são retomados aqui
como elementos estratégicos, criando uma analogia de proporção, pois do mesmo
modo que se deve dividir e organizar o tempo entre os inúmeros afazeres, da
mesma maneira deve-se atentar para o correto ordenamento, arrumação e adorno da
habitação. Para Alorna, a boa organização e a beleza da casa começam com a
limpeza e com o devido cuidado com a conservação dos móveis. Equivale a dizer
que os modos de expressão exterior são o espelho de um espírito cultivado;
nesse caso específico, de uma esposa elegante, prudente e virtuosa. (CIDADE,
1941, p.83)
Para
o nosso pensamento contemporâneo, em que as ideias burguesas de privacidade e intimidade
prevalecem, não faz sentido articular uma certa maneira de decorar a casa com o
grau de virtude que alguém adquiriu ao longo do tempo. Segundo a matriz
liberal, mais lógico seria entender a habitação como expressão da ostentação,
do luxo e da riqueza material de seus proprietários. Entretanto, para Alorna,
isso seria equivocado, além de empobrecer o debate sobre o papel social da
mulher, já que a verdadeira nobreza não possui correspondência alguma com
gastos suntuosos e exorbitantes, porém com o dispêndio ordenado e disciplinado
do dinheiro – a uma “boa educação”, como ela se refere –, o que rivaliza com a
“desordem”, o “desarranjo” e a “sordidez”. No polo oposto, há um outro: o da
falta de móveis e da má conservação dos objetos da casa. É que esses aspectos
exteriores são signo da “preguiça” e da “indolência” de seus moradores. O
aumento e a “alegria” da família dependem da limpeza e elegância dos aposentos;
o espaço da casa é um “teatro da felicidade”, em que a simplicidade elegante
deve vigorar e nunca as extravagâncias, que só atraem dívidas, e a
familiaridade pouco amistosa.
A
quarta carta é dedicada à “economia doméstica”, cujo assunto se refere à
escolha e à administração da criadagem. A regra fundamental se anuncia logo de
início: deve-se ter poucos e bons criados, o que reverte em favor do serviço
prestado por eles. É justamente nesta carta que a marquesa de Alorna afirma
explicitamente que o “governo doméstico” é de responsabilidade da esposa e que
os serviçais são êmulos dos filhos de sangue, portanto membros eméritos da
família, com respectiva retribuição em amor. (CIDADE, 1941, p.85)
A
partir disso, Alorna reduz seus conselhos a algo (digamos) comezinho ou ao
dia-a-dia da casa, como ter um mordomo, que se responsabilize pela
administração geral e pelo comando dos outros criados; e que estes, por sua
vez, devem ter as suas atribuições bem definidas. Para o controle do orçamento
familiar, basta anotar tudo em livros específicos; depois, ao final de cada
mês, verificar, com diligência, a contabilidade de receitas e despesas, e, caso
necessário, fazer os devidos ajustes ou correções de percurso. Esse “livro de
razão” (ou de contabilidade, por assim dizer) é parte da “escritura doméstica”,
assim como as cartas de caráter pessoal.
Nesta
parte, é impressionante o caráter prático dos conselhos da mãe para a filha. Se
a argumentação começou pelas primeiras lições recebidas na casa materna pela
futura esposa, agora o sentido discursivo das cartas particulariza as
responsabilidades com a administração da casa, sobretudo com o controle dos
recursos financeiros. Portanto, quando ordenados segundo uma disciplina que não
é apenas de caráter pecuniário, mas também revelam a robustez do espírito e o
compromisso com uma constante busca pela perfectibilidade.
Na
quinta carta, pode-se perceber que as demandas mais imediatas do espaço
doméstico cedem lugar às preocupações com os deveres de caráter público. A
primeira advertência é tomar cuidado com as companhias, sobretudo, com aquelas
que, pela frequência do convívio, aparentam virtude. É que a maledicência –
esse “mal da língua”, como afirmavam os moralistas do período – possui na
contrafação da virtude suas armas mais poderosas e que a vida em sociedade,
fora, portanto, do âmbito da família e da casa, apresenta outra lógica de
funcionamento, em que as regras de civilidade devem presidir as relações
humanas. (CIDADE, 1941, p.88)
Assim,
se a alta estirpe, a beleza e a juventude são a razão para as demandas sociais
constantes, isso pode reverter em boa oportunidade para angariar reputação,
distinção social e honra. O conselho é certeiro: “modéstia” e “austeridade” dos
modos, prudência na escolha dos eventos públicos em que se comparece e polidez
no trato. Lembrando que os divertimentos são dissipações do espírito, se
desregrados, e se movem pelo turbilhão dos sentidos, causando desvios em
relação ao reto caminho e causam “dores” e “aflições”. Porém, esquivar-se dos
eventos sociais é tão pernicioso quanto o excesso deles; pior ainda, a busca
incansável pela “indulgência dos outros”.
O
tom admoestatório das cartas anteriores se agrava nesta última, a sexta. O tema
retoma a questão da esposa mais preocupada com frivolidades de “toucador” e com
as “regras da moda”, já enunciadas na quinta carta, do que em angariar boa
reputação e renome para a si mesma, e assim proporcionar o aumento de sua
família. Particularmente, em estilo grave e pesaroso, os conselhos da Marquesa
de Alorna se adensam e insistem no cultivo e aperfeiçoamento das virtudes. Isto
porque uma existência que se volta exclusivamente para o mundo exterior e para
a convivência pública tem por efeito apenas importunação, tristeza e
enfadamento. (CIDADE, 1941, p.93)
Por
fim, a mãe experiente e cautelosa aconselha à filha a evitar o “tom grotesco”
das “zombarias” e “chufas” (essas brincadeiras espirituosas com ar inofensivo),
pois são o terrível algoz do princípio fundamental da “caridade”,
estrategicamente a mais importante virtude a ser cultivada pela esposa. É a
partir da centralidade dessa virtude, entendida conforme a doutrina da economia
que Alorna vem expondo, que se determina o contentamento dos demais membros da
família e a correta aplicação da justiça distributiva.
II.
Ora,
os enunciados da Marquesa são amplamente tributários dessa nova forma de
organização política, como aquela saída da Revolução francesa e da filosofia
iluminista. Assim, não haveria mais espaço para uma mulher frívola, fraca e
passiva, preocupada com adornos ou o grau de fascínio que poderia exercer sobre
os homens; o momento demandava mulheres enérgicas, dignas e ativas.
Numa
sociedade estratificada, havia uma divisão clara entre os deveres da esposa e
do marido. Se para o universo masculino a atuação no espaço público era a
tônica principal, para a mulher, restavam as atribuições domésticas e alguns
deveres sociais (ANTUNES, 1982). A escritora portuguesa Marquesa de Alorna
(1750-1839) dedicou assim, nessas cartas à filha, espaço considerável à
educação de uma jovem da nobreza e as suas respectivas responsabilidades no
interior da família.
No
Antigo regime é central o conceito de “civilidade”: um código de condutas, que
recobre um amplo espectro de interesses que vai do ordenamento dos corpos, dos
modos à mesa, passando pelo cálculo das interações sociais e pelos modos de
vestir, até o governo de si mesmo e da família (ALVIM, 1988). Nesse sentido, o
próprio conceito de “educação” abrange uma dinâmica social de maior envergadura
que movem as várias maneiras de dizer e de fazer. Civilidade e educação são
faces complementares, pois compreendem ensino e aprendizagem, e disciplinam os modos
de agir.
Por
fim, o que possível dizer é que a “era das revoluções” (HOBSBAWN, 1998) testemunha
o surgimento de uma voz feminina, que está ligada a essa atuação codificada,
fundada no princípio hierárquico que estabiliza toda a comunidade política. Conforme
diz Godineau, “o Século das Luzes é efectivamente o século das mulheres” (1997,
p.311). Elas estão presentes nos ambientes aristocráticos dos salões literários,
nas páginas dos ensaios filosóficos e dos romances, nos espaços populares das
tabernas e das ruas, transitando entre o espaço privado e o espaço público,
entre o ideal de mulher submetida ao marido e a sua maior participação nas
relações sociais.
Referências
O
autor é Doutor em Letras (Unicamp/Universidade Nova de Lisboa)
Pós-Doutor
em História da Cultura (UFPR)
Prof.
Adjunto do Delet/UNICENTRO
ALVIM,
Maria Helena V. De defensora das Luzes à agente contra-revolucionária. Revista de História das Ideias.
Coimbra/Faculdade de Letras, v.10, 1988, pp.265-276.
ANASTÁCIO,
Vanda. Introdução. In: PORTUGAL, D. Leonor de Almeida. Marquesa de Alorna. Sonetos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007,
p.11-72.
ANTUNES,
José. Notas para o sentido ideológico da reforma pombalina: a propósito de
alguns documentos da imprensa da Universidade de Coimbra. Revista da História da Idéias, IV (II): 181-183, 1982.
CIDADE,
Hernâni. Prefácio. Marquesa de Alorna. Inéditos.
Cartas de outros escritos. Lisboa: Sá da Costa, 1941.
GODINEAU,
Dominique. A mulher. In: VOVELLE, Michel et al. O
homem do Iluminismo.
Lisboa: Presença, 1997, pp.311-335.
HOBSBAWN,
Eric. A era das revoluções (1789-1848).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
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